Religiões e Democracia: entrevista com Rodrigo Portella

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O CONIC criou, em seu site, o espaço Religiões e Democracia. A ideia é refletir as relações entre a religião e a democracia e trabalhar a temática com o auxílio de perguntas feitas a lideranças religiosas, teólogos e teólogas, cientistas da religião e de outras áreas do conhecimento. Desta vez, Rodrigo Portella, doutor em Ciência da Religião.

1) De que modo as religiões podem contribuir para o aprofundamento da democracia?

É uma questão complexa, pois “as religiões” têm paradigmas muitas vezes discordantes entre si (e, portanto, é complicado generalizá-las), e nascem em ambientes culturais, refletidos em seus textos fundantes e teologias, em que a democracia, assim como a conhecemos hoje, não existia. Aliás, podem mesmo refletir, em suas mensagens e literaturas, modelos não democráticos. Contudo, seja a partir de novas hermenêuticas de seus textos e teologias (desde que não os forcem desonestamente ou os manipulem para concordar com o espírito de nossa época), seja independentemente delas, as religiões organizadas enquanto instituições burocráticas de representação e normatização da fé de seus adeptos deveriam, a meu ver, colocar em suas agendas questões em comum referentes aos direitos humanos, conforme normatização da ONU, dentre eles a questão da liberdade e democracia. Neste sentido, partiriam de um dado externo a elas, e secular, para seu debate e contribuição a estes temas. Porém, a questão complica porque as religiões, a priori, não têm a obrigação de reconhecer os parâmetros da ONU, por exemplo, como “sagrados” ou vinculativos, e religiões como o Islã, o Confucionismo, dentre outras, têm perspectivas diferentes sobre a organização da sociedade, que diferem dos modelos democráticos modernos. Mesmo a Igreja Católica não reflete, em sua organização interna, um modelo democrático moderno e, assim, como poderá dialogar sobre democracia na sociedade? Não seria incoerente? Contudo, como certa vez afirmou o frade dominicano português, Bento Domingues, se a Igreja não é uma democracia, não precisa, por isso, ser uma ditadura. Penso que aqui está um paradigma interessante: as religiões podem não conter mensagens explicitamente democráticas em suas mensagens fonte, mas as instituições que as representam não necessitam, por isso, fugir a este debate, ou propor modelos autoritários de sociedade; ao contrário, podem e devem fazer leituras de suas tradições que sejam dialógicos com os modelos modernos de democracia.

2) Algumas religiões acreditam que a democracia é incompatível com aquela fé. Como lidar com isso?

Creio que isto, de alguma forma, já foi respondido acima. De fato não é um processo dialógico fácil, mas é necessário o esforço, principalmente quando está em jogo o bem do ser humano e do planeta.

3) No Brasil, expressões religiosas, sobremaneira cristãs, se apossam cada vez mais dos espaços públicos e conquistando grandes representações no Congresso Nacional. Como avalia esse fenômeno?

Numa democracia me parece legítimo. Em democracia qualquer grupo – LGBT, sem terra, ruralistas, movimentos populares, industriais, religiões – podem e têm direito de participar, através dos meios político-democráticos, das decisões do país, fazendo valer, no cenário político-democrático, suas vozes e pensamentos. Isto, me parece, é democracia, e faz parte da democracia o conflito de ideias, às vezes tenso e polêmico. Já a forma como tais grupos atuam é outra discussão. E, claro, nem sempre precisamos os podemos concordar com a forma de atuar dos vários grupos, inclusive os religiosos. Mas este é o bônus e o ônus da democracia, que andam juntos.

4) As religiões de matriz africana, por outro lado, estão pouco representadas. Como você interpreta isso?

Tais religiões têm tido um decréscimo numérico no Brasil, conforme o último censo, e também não costumam ter o poder econômico e midiática das Igrejas evangélicas, por exemplo, o que acaba por se refletir em pouca representação no cenário político. Infelizmente o poder político no Brasil ainda é calcaldo, e muito, a partir do poder econômico, o que, evidentemente, torna injusta uma representação mais plural nos meios políticos decisórios, prejudicando, assim, as minorias (principalmente econômicas) que se vêem prejudicadas quanto à sua representação e força.

5) Agora, uma pergunta provocativa: é possível, a partir da teologia ou das teologias cristãs, estabelecer relação entre religião e democracia? Se sim, quais seriam as chaves teológicas? Se não, quais seriam as chaves teológicas?

É pergunta ampla, sem condições de resposta clara aqui, pois é pergunta para muitos livros, e muitas teses (rs). Em questão de “chaves teológicas” tudo parece possível, desde as mais fundamentalistas até as mais libertárias. O teólogo e exegeta Rudolf Bultmann assinalou, com justeza, que “toda exegese dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo, mas fá-lo dizer o que ela quer ouvir” (Rudolf Bultmann, Será possível a exegese livre de premissas?, p. 224).Portanto, em sentido, inverso, também será possível dizer que toda exegese ou hermenêutica dirigida por concepções teóricas pré-definidas faz com que o texto | mensagem revele o que se deseja dele entender. Não há chave teológica “pura”, todas nos refletem, nossas biografias, nosso mundo, nossos interesses e opções. Portanto, de muitas maneiras, creio que esta pergunta por ser respondida, de várias maneiras, tanto por “chaves teológicas” que abrem ou que fecham a relação religião-democracia. É, religião e democracia não são temas fáceis… São complexas como a vida e o mundo.

6) É comum utilizar a bíblia para legitimar e justificar posturas antidemocráticas. É possível identificar possíveis iluminações bíblicas que contribuiriam para fortalecimento da democracia e para a valorização das diversidades?

Sem dúvida!! É como já respondi acima: a Bíblia pode justificar atrocidades ou grandes atos de humanidade. Depende de quem a lê e de que “chaves” usa para a abrir e entender. A Bíblia, e não só ela, em muito nos reflete como somos e com as idéias que temas e sempre há uma mão dupla: se nós nos convertemos a ela, ela também se converte a nós. É uma dialética complexa.

7) Algumas vozes analisam a laicidade do Brasil como ambígua. É possível a relação entre religião e política sem ferir a laicidade? Como analisar a presença pública da religião no Brasil e sua relação com o Estado?

A laicidade do Estado indica que o Estado não pode privilegiar nenhuma religião específica. Por outro lado, indica que todas as religiões têm o direito de exercer sua cidadania política perante o Estado. Esta é a dialética delicada que precisa sempre ser equacionada, ou seja, o Estado deve dar direito de voz e participação política a todos os grupos sociais (inclusive, aí, os religiosos), mas nenhum grupo social – religioso ou civil – numa democracia laica, pode ter voz mais forte do que o outro em sua participação política. E aí estão os conflitos, que é a alma da democracia: uns pensam de um jeito, outros pensam de outro, e todos têm direito igual à voz e de decidir o rumo da sociedade. Como chegar a consensos? Será possível numa democracia? Sim, é o ideal, mas como o próprio nome diz, é o “ideal”, o horizonte a ser perseguido, mas este caminho se faz no conflito de ideias e interesses. A democracia não é um sistema político fácil, aliás, é o mais complexo de todos, o mais difícil (mas também, creio, o melhor). E a laicidade, o tênue fio dela, também está nesta complexidade. O que não pode é que prevaleça os extremos de interpretar laicidade erroneamente, isto é, como exclusão das religiões de sua voz e participação nos rumos políticos da sociedade.

Biografia:

Rodrigo Portella foi pastor da IECLB e é doutor em Ciência da Religião (UFJF), com estágio pós-doutoral em Teologia pela PUC-RJ. Atualmente, é professor adjunto III no Departamento de Ciência da Religião da UFJF. É autor dos livros “Mirar Maria: reflexos da Virgem em espelhos da História” (Editora Santuário, 2016) e, junto com Antônio Magalhães, “Expressões do Sagrado: reflexões sobre o fenômeno religioso” (Editora Santuário, 2008).

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