Qual o país que queremos

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Walter Altmann

No dia 6 de abril Lusmarina Campos Garcia participou, como pastora luterana, do ato ecumênico (não “missa”) em lembrança de Marisa Letícia, esposa falecida do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, a qual faria 68 anos nesse dia. Desde então Lusmarina foi submetida a uma enxurrada de críticas, muitas delas agressivas e colocadas em sítios das redes sociais. Não poucos exigem de sua igreja, a IECLB, que Lusmarina seja “expulsa”.

Os fatos demandam considerações:
1. Ela participou a título pessoal, enquanto pastora luterana, e assim também foi apresentada. Em nenhum momento alegou estar falando em nome da sua igreja. O nome IECLB não se ouviu em nenhum momento. Oficialmente, em nome da IECLB falam, obviamente, suas lideranças constituídas, eleitas em Concílio. Tampouco o bispo emérito Dom Angélico Sândalo Bernardino falou em nome da CNBB, que também não foi mencionada no ato. Naturalmente, qualquer membro da IECLB, não por último seus ministros e ministradas ordenadas, deve se pautar pela base confessional de sua igreja. Teria Lusmarina de algum modo afrontado essa base confessional?

2. Obviamente, o ato teve grande impacto e repercussão política, o que também era perfeitamente previsível, dadas as circunstâncias em que ele teve lugar. Perguntemo-nos então: é legítimo para alguém que se professa à fé cristã participar de ato religioso que tenha repercussão política ou nesse caso deveria dele se abster para manter sua “isenção”? Ora, a fé cristã, em sua versão de confissão luterana de modo algum advoga qualquer “retirada do mundo”; ao contrário, o desafio é viver sua fé cristã em meio às circunstâncias impostas pela realidade, mesmo as mais duras, em especial nestas. Assim, o que se preconiza é que qualquer pessoa que professa a fé cristã incida também no mundo político de acordo com a sua consciência, comprometida com o testemunho bíblico, na busca sincera de corresponder à vontade de Deus e entendido como um serviço de amor ao próximo. Não há nenhum indício de que Lusmarina tivesse querido afrontar esses princípios ou de fato os tenha afrontado. Ainda que outras pessoas pudessem julgar para si mesmas que outra postura seria a mais adequada, ninguém está legitimado para emitir juízos, a partir de suas próprias convicções, sobre o procedimento pessoal que ela adotou. Ao contrário, é de se presumir que ela tenha atuado como atuou por considerar que precisamente assim estava prestando um serviço compassivo ao ex-presidente Lula num momento delicado de sua vida e um testemunho profético num momento crucial da vida do povo brasileiro. E isso é seu pleno direito e mesmo seu dever.

3. Dirão algumas pessoas: “Mas ela foi apresentada como pastora e como tal não pode assumir posturas com claras implicações políticas, ainda mais em um ato religioso. Comportamentos que tenham cunho político estão reservados às pessoas leigas, uma pastora deve dar atendimento pastoral e espiritual a todos os membros, não tomar partido em assuntos políticos.” Bem: A confissão luterana não conhece tal tipo de “reserva de mercado” da ação política para pessoas leigas. Aliás, ela não faz distinção de qualidade entre uma pessoa leiga (palavra que significa “membro do povo de Deus”) e uma pessoa ordenada, que também é membro do povo de Deus. Há uma diferença não de qualidade, mas de função, incumbindo-lhe precipuamente a proclamação da palavra e a administração dos sacramentos. Tem uma responsabilidade de cuidado para com todas as pessoas que lhe são confiadas no exercício de seu ministério, mas não é “funcionária” ou “empregada” delas. Sua responsabilidade última é com a Palavra de Deus e se em sua consciência e pelas circunstâncias dadas vier a ser compelida a escolher entre essas duas “fidelidades”, embora não seja seu desejo ter que fazer tal escolha, é pela última que deve optar. Em suma: também uma pessoa ordenada tem, sim, sob o evangelho, uma responsabilidade de cunho político no seu sentido mais amplo.

4. E a igreja, concretamente a IECLB, como fica? Vozes críticas que se abatem sobre Lusmarina também demandam de sua igreja que ela seja disciplinada, mais: seja “expulsa”. Parece que nutrem o sonho de uma igreja monolítica, sem divergências de opinião interna, comandada de cima abaixo, que também em assuntos políticos tenha uma posição única, a que todos seus membros, pelo menos os do ministério com ordenação, deveriam se dobrar. (E, naturalmente, seria aquela posição que elas próprias entendem como acertada e muitas vezes também proclamam abertamente nos espaços em que atuam e nas redes sociais.) Ora, nada mais distante de uma eclesiologia de confissão luterana. O que precisaria ser demonstrado não é se Lusmarina assumiu uma posição com repercussão política que desagrade a outras pessoas, sejam poucas ou muitas, mas qual a doutrina de confissão luterana ela tenha infringido.

5. Ao invés de se deixar enredar nessa disputa política, quase de cunho pessoal, a igreja tem sim neste momento extremamente delicado do país, uma tarefa de vigilância profética e de consciência evangélica no seu sentido mais autêntico. Em 1970, no auge da ditadura militar, a IECLB proclamou em Concílio, realizado em Curitiba, documento que passou a ser conhecido precisamente como O Manifesto de Curitiba. Entre outras coisas, esse documento afirma que “a igreja, por sua vez necessitando da crítica do mundo, desempenhará uma função crítica – não de fiscal, mas antes de vigia (Ezequiel 33,7) e de consciência da Nação.” E passou a enfocar assuntos então candentes como o ensino de educação moral e cívica introduzido pelo regime militar no sistema escolar e os direitos humanos que estavam sendo gravemente infringidos no país. Posteriormente, se pronunciou com clareza pela anistia a brasileiros no exílio, pela reforma agrária (1982-“Terra de Deus – terra para todos”), em solidariedade a povos indígenas e em favor das “diretas já” – para mencionar alguns temas. Por mais aguda que seja a tensão interna no país, o silêncio e a omissão não constituem uma opção autêntica para a igreja. Sempre há uma palavra evangélica a ser dita quanto à corrupção, à violência, às execuções de cunho político, ao ódio que grassa nas redes sociais e nas ruas, às artimanhas de poderosos contra o interesse do povo, à grave desigualdade social, ao sofrimento de pessoas empobrecidas, discriminadas e marginalizadas, às agressões à natureza. Em suma: a igreja tem uma vocação de ser voz em favor da justiça, da paz, do cuidado para com a criação, priorizando as pessoas mais vulneráveis, “pequeninas irmãs de Cristo” (Mateus 25).

6. Pode não ser agradável nem desejável que assim seja, mas a realidade é que hoje, queiramos ou não, a sociedade brasileira está profundamente dividida – profundamente. Ela está dividida entre aquelas pessoas que acreditam que Lula é o chefe maior da corrupção que tem assolado o país, que ele por justiça é levado à prisão, que ele “não está acima da lei” e as instâncias do judiciário apenas e finalmente estão cumprindo seu dever e que ele, por conseguinte, de modo algum pode ser candidato à Presidência, e aquelas pessoas que estão convencidas de que Lula foi o melhor presidente que o Brasil já teve, que ele está sendo vítima de uma justiça seletiva e no caso dele intencionalmente acelerada e combinada, que até o Supremo Tribunal Federal por voto majoritário está deixando de lado preceitos claros da Constituição e que, em definitiva, não se pode tirar do povo brasileiro o direito de ele soberanamente decidir se Lula volta à Presidência do país ou não. Essa divisão, é claro, perpassa também o interior das igrejas. Será preciso, em humildade, conviver com essa realidade. E em sua espiritualidade a igreja é chamada a demonstrar que ela ainda é algo mais e algo diferente do que um embate político, por mais radical que ele seja ou muito precisamente quando o é. E seus membros são desafiados a entender e aceitar que assim é. Ela é uma “comunhão de pessoas santas” e, no entendimento da confissão luterana, isso são pessoas pecadoras, mas justificadas pela graça de Deus, tão-somente por ela. Por isso elas não são convocadas a se julgarem mutuamente, mas a com toda simplicidade se colocarem sob a palavra de Deus e se reunirem em torno da mesa do Senhor.

7. Voltando ao cenário político brasileiro, no fundo, no fundo, atualmente o que está em jogo é, sim, embora diferentemente do que aquela esperta jogada de marketing político e eleitoral da Rede Globo tenta sugerir, “qual o país do futuro que queremos”.

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