Liberação da posse de arma pode aumentar casos de feminicídios no Brasil

Especialistas ouvidos pela VICE afirmam que revisão do Estatuto do Desarmamento pode intensificar agressões contra mulheres. O raciocínio é simples: mais armas em casa, mais mortes.

Um dos principais holofotes da campanha do presidente recém-eleito Jair Bolsonaro (PSL) foi a revisão do estatuto de posse de arma que facilitaria a compra de pistolas pelo cidadão comum. Para os especialistas ouvidos pela VICE, essa descomplicação na aquisição de armas seria um tiro no pé: aumentaria ainda mais os casos de violência doméstica e mortes de mulheres no país.

Os números mostram que o problema já é grave no Brasil. Segundo os dados do Mapa da Violencia e do Atlas da Violência, as vítimas mais comuns por disparo de fogo são jovens negros e mulheres. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras.

Segundo o Atlas da Violência, entre 1980 e 2016 cerca de 910 mil pessoas foram mortas por armas de fogo no país. Conta o documento que “Uma verdadeira corrida armamentista que vinha acontecendo desde meados dos anos 1980, quando a proporção de homicídios com o uso da arma de fogo girava em torno de 40%, esse índice cresceu ininterruptamente até 2003”, e só foi interrompida com a criação o Estatuto do Desarmamento. Já o Feminicídio só foi inserido no Código Penal em 2015, sendo configurado como homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos.
Uma prova de que a posse de arma nunca foi garantia de segurança é a extinta Campanha Nacional do Desarmamento, que incentivava a população para o desarmamento. Foi uma ação do próprio Governo Federal que integrava o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, em apoio a Ações de Prevenção à Violência. A campanha motivava a entrega espontânea de armas de fogo, podendo a pessoa ser indenizada por até R$ 300, de acordo com o tipo e calibre da arma.

Nesse sentido podemos compreender que se antes o próprio governo incentivava a retirada de armas de fogo de circulação e logo depois foi sancionada a lei de desarmamento, não faria muito sentido o retrocesso de uma nova liberação da posse se arma no Brasil.

A advogada Maria Letícia Ferreira, do TamoJuntas, organização que presta assessoria jurídica, psicológica, social e pedagógica gratuita a mulheres em situação de violência, revela que o Brasil é o 5º país no ranking mundial de países que matam mulheres. Como maioria das vítimas é assassinada por parceiros e os crimes muitas vezes acontecem dentro de casa, a liberação do porte de armas pode ter efeitos catastróficos.

“Mulheres e crianças são as maiores vítimas da violência no lar. Com a liberação e aumento da circulação de armas de fogo, a letalidade das agressões deve aumentar incidindo sobre os índices de feminicídios”, explica a advogada da Bahia.

O Ministério Público do estado de São Paulo realizou pesquisa que concluiu que 66% dos feminicídios no Brasil ocorreram na residência da vítima e que 70% eram pessoas do convívio da vítima ou ex-cônjuge. A arma de fogo, por sua vez, é a segunda opção mais utilizada, abaixo somente de facas.

A regulamentação da posse de armas está vigente no Brasil desde 2003, mas nem sempre foi assim. Em meados dos anos 80 e 90, era possível a qualquer momento nos deparar, em jornais e revistas, com anúncios de venda de armas. O Estatuto foi criado para restringir a posse e o acesso a armas no país.

Parece que esse passado está próximo de se tornar realidade se formos considerar o plano de segurança de Jair Bolsonaro, com a revisão do projeto de lei que autoriza a aquisição, a posse e a circulação de armas de fogo e munições em território brasileiro.

Em publicação em sua rede social, o autor do projeto de lei, o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC), confirmou que o presidente eleito decidiu adiar a votação para 2019. Entre as declarações do texto: “a composição do novo Congresso é mais conservadora. Com os novos deputados, as chances de aprovarmos o PL 3722 são bem maiores”.

A advogada e mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ, Paola Bettamio, explica que a legalização do porte de arma foi uma experiência traumática em diversos países, pois “o problema da segurança muitas vezes se relaciona a outros, como a desigualdade social, a ausência de investimento em educação e lazer entre outros”. “Se não se resolver o problema pela raíz, todas as outras soluções se tornam ineficazes”, diz.

Mas é claro que a simples liberação de posse de arma não fará com que qualquer um vá ao mercado mais próximo e compre arma. Existem dois órgãos que controlam armas de fogos existentes no país. O Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), vinculado ao Exército Brasileiro, regula o armamento das forças armadas e auxiliares e, também, dos caçadores, colecionadores e atiradores esportistas; e o Sinarm – Sistema Nacional de Armas – vinculado ao Departamento de Polícia Federal, que centraliza o controle das demais armas de fogo.

A lei, em vigor até o momento, contém algumas restrições burocráticas para a aquisição de uma arma de fogo para defesa pessoal. O cidadão deve ter acima de 25 anos, solicitar autorização com a Polícia Federal e apresentar documentação, além de preencher formulário, justificando a efetiva necessidade e comprovar aptidão psicológica, ocupação lícita e antecedentes criminais negativos.

Para a advogada Maria Letícia, arma de fogo é poder e as pessoas relacionam segurança a maior força e poder. No entanto, no ambiente doméstico, as armas de fogo, além de causar acidentes, também aumentam a gravidade das agressões entre familiares já tão comum em nosso país.

Não podemos resolver o medo através do medo, como comenta a advogada Paola Bettamio. “As pessoas se sentem inseguras pela violência e respondem muitas vezes a esta insegurança através da mesma violência”, diz.

Por Gislene Ramos-Vice, 06/11/2018 

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