Qual é o nosso Kairós?

Por Felipe Gustavo Koch Buttelli-

Muitas vezes ficamos aflitos, mas não somos derrotados.
Algumas vezes ficamos em dúvida, mas nunca ficamos desesperados.
Temos muitos inimigos, mas nunca nos falta um amigo.
Às vezes somos gravemente feridos, mas não somos destruídos. (2 Cor. 4.8-9)
No mês de agosto, dos dias 17 a 20, ocorreu na África do Sul, em Joanesburgo, a celebração do trigésimo aniversário do documento Kairós. O Documento Kairós foi escrito por teólogos e teólogas, membros leigos ou ordenados de igrejas sul-africanas no ano de 1985, durante um período de instabilidade política que beirava a um contexto de guerra civil, quando a população negra, sobretudo a juventude, se ergueu contra o regime de segregação social e racial. Naquele contexto histórico, as igrejas e as pessoas cristãs se encontravam em uma posição confortável, em que não se confrontavam com o dilema ético que o apartheid suscitava. O Documento Kairós de 1985 foi um desafio às igrejas, para que reconhecessem o tipo de engajamento que tinham com um regime que fora reconhecido como heresia, ou seja, como uma ofensa à compreensão daquilo que Deus manifestou ao mundo através de sua revelação em Jesus Cristo.

No referido documento, assinado por mais de 160 personalidades do contexto eclesial e teológico da África do Sul, refere-se a um conceito bíblico e teológico chamado Kairós. Kairós vem do grego e diferentemente do conceito cronológico (kronós), mede o tempo sob outras perspectivas. O tempo kairós não é o tempo cronológico, metricamente medido, previsível, contínuo e controlável. O tempo kairós escapa ao nosso controle, é o tempo oportuno, o tempo em que as coisas tornam-se maduras a acontecer. O tempo Kairós é o tempo em que Deus se manifesta, sem que possamos entender ou controlar. É o tempo para que Deus proceda em sua ação e revelação na realidade. Os cristãos na África do Sul identificaram esse momento na situação de opressão e sofrimento por que passavam as pessoas negras excluídas e marginalizadas.

No seu empenho crítico, identificaram que havia uma teologia de estado, que dava justificativa ao regime político de apartheid. Esta teologia justificava e se comprometia com o regime de opressão política, social e racial. Outra teologia identificada é a teologia de igreja. Esta se considerava neutra diante das questões políticas, acreditava que a fé dizia respeito às questões espirituais. Para a teologia “igrejeira”, as igrejas e a reflexão teológica não tinham que responder às demandas do contexto social e político do apartheid.

Assim, era necessário formular uma teologia em termos proféticos. Esta teologia profética, ou teologia no Kairós, compreende que Deus toma lados e se posiciona na história. Esta posição é sempre em favor dos e das pobres, das pessoas marginalizadas, das pessoas que sofrem na sociedade. Neste sentido, qualquer teologia que desse apoio ao regime de segregação, seja oficialmente, como através de uma teologia de estado, seja indiretamente, como através de uma teologia neutra de igreja, seria considerada herética, ou seja, contrária à noção expressa na revelação em Cristo.

Este modo profético e contextualmente situado no mundo de se fazer teologia inspirou diversos documentos Kairós por todo o mundo. Um dos mais notáveis e importantes para o contexto contemporâneo, em termos de impacto e de mobilização da comunidade internacional, é o Kairós Palestina, chamado “Um momento da verdade”. Neste documento, cristãos/ãs palestinos/as expressam sua situação de sofrimento e convidam a igreja em todo mundo e a comunidade internacional de modo mais amplo a “vir e ver” a situação do povo palestino. Denunciam a ocupação militar de Israel no território palestino e as diversas violações aos direitos humanos que resultam disso. Dentre as diversas reações que este documento evocou, uma resposta veio do Brasil. Desde a tradição da teologia da libertação, uma resposta engajada nas lutas por libertação brasileiras foi elaborada, manifestando solidariedade com o sofrimento dos palestinos. Há, portanto, uma memória subversiva, uma memória de resistência e de luta contra regimes de opressão, contra a deterioração da dignidade humana, seja por razões étnicas, raciais, religiosas ou políticas. A tradição kairós chama atenção à contextualidade e singularidade da ação de Deus no mundo. Deus, em suas diferentes acepções ou formas de conceber, se manifesta não somente aos indivíduos, mas na realidade histórica, visando à transformação da mesma através das mãos humanas. Como diria Desmond Tutu, somos aquelas pessoas capazes de realizar o sonho de Deus.

Ao mesmo tempo em que o encontro de Joanesburgo celebrou uma “memória perigosa”, ele também oportunizou o encontro de cristãos e cristãs e, mais do que isso, de pessoas de diversas religiões que lutam pela dignidade humana em seus contextos, perguntando quais são os aspectos que caracterizam o contexto contemporâneo. Em suma, existe um kairós contemporâneo? Existe uma oportunidade ímpar, um momento oportuno, uma situação vivencial em que podemos compreender que Deus toma lado, toma partido, manifesta-se inequivocamente?

Evidentemente, a comunicação e a facilidade do acesso à informação nos demonstram a diversidade dos problemas contextuais, dos dilemas vividos nos diferentes lugares deste planeta. Seja nos lugares mais remotos, como é o caso da Suazilândia que vive uma repressão política severa, seja na bastante noticiada realidade dos imigrantes refugiados da Síria e do norte da África, que embarcam na realidade de incertezas, perigos e inseguranças em direção à promessa de vida e segurança na Europa. Seja na Nigéria, com o conflito político e religioso resultante da atuação do grupo terrorista Boko Haram.

No Brasil há um contexto específico, em que a intolerância em todos os âmbitos da sociedade recrudesce. Seja com fundo político ou religioso, seja no campo da moral ou da ética, aumenta vertiginosamente o discurso da intolerância, do ódio, da autojustificação, da violação dos direitos, do aumento da influência e poder político e econômico dos setores mais reacionários da sociedade, perseguindo minorias indígenas, sexuais e religiões de matriz afro-brasileiras, criminalizando a pobreza, a juventude, especificamente a juventude negra e de periferia. Há uma perseguição e desconstrução das pautas sociais, como é o caso dos direitos trabalhistas, das garantias mínimas do cidadão e cidadã. Ou seja, é possível reconhecermos a parcialidade e a contextualidade de todas as situações onde há violação dos direitos humanos, onde há uma agressão à dignidade humana, destruição da malha social, do meio ambiente etc.

Esta memória subversiva e perigosa do kairós, ainda que seja construída desde as particularidades e os sofrimentos mais localizados, consegue expandir-se a ponto de reconhecermos a globalidade dos motivos e das dinâmicas que criam sofrimento, violência e opressão. De fato, esta memória perigosa reconhece a existência de um Império que, além do âmbito da dominação política, como outros impérios, invade o espaço da cultura, da economia, da produção de sentido, da religião etc. Expande-se sob a égide de um regime de colonialidade do pensar, do saber e do ser. Perpassa o campo da política, constitui-se sobre a rede de comunicações, do uso das mídias, e atinge globalmente a quase todas as pessoas, direta ou indiretamente. Este império, em seus interesses políticos e econômicos, desdobra-se em relações bem localizadas, bem vivas e reais no contexto das pessoas mais marginalizadas, sejam as pessoas negras nos Estados Unidos da América, sejam os povos indígenas no Brasil, perseguidos e mortos pela fome de terra do agronegócio, sejam as mulheres e as pessoas com outras orientações sexuais numa sociedade patriarcal, androcêntrica e heteronormativa. Na Índia o sistema de castas permanece como um entrave cultural e religioso que cria a exclusão social e econômica; na África as crises politicas, religiosas, econômicas e ambientais criam uma instabilidade que está na base do movimento de pessoas que buscam uma vida melhor em outros lugares do globo. A memória kairós, perigosa e subversiva, que parte da particularidade, reconhece a globalidade do Império e a necessidade de um engajamento global na luta por paz e justiça.

A tradição Kairós é uma voz crítica que nos chama sempre ao engajamento local. Seja na realidade do bairro, na luta por melhores condições de vida, na luta contra o racismo na escola, no trabalho, na comunidade, contra o sexismo ou outras formas de discriminação com base na orientação sexual, seja na opressão aos pequenos/as agricultores e na imposição de um modelo de agronegócio que concentra renda e exclui, persegue e mata indígenas. Seja na criminalização da juventude, na redução da maioridade penal, no racismo contra a juventude negra, seja na fragilização dos direitos trabalhistas e na precarização das condições de trabalho, seja na luta contra a injustiça socioambiental, seja na perseguição religiosa às religiões de matriz afro-brasileira e na luta contra o fundamentalismo religioso, dentre tantas outras lutas que nos atravessam no caminho por dignidade e justiça.

É tempo em que podemos identificar onde Deus está na nossa realidade, na nossa realidade contextual ou global. É tempo para, com base na nossa fé, nos engajarmos nas lutas por justiça e paz, por libertação, dignidade e melhores condições sociais e econômicas para o conjunto da população. A memória subversiva e perigosa das lutas de irmãos e irmãs, em nosso contexto ou em outros, nos encoraja e nos dá a certeza da presença de Deus na solidariedade e no engajamento por justiça e paz. Que sejamos pessoas protagonistas na transformação das nossas realidades no tempo oportuno que vivemos hoje.

Autor: Felipe Gustavo Koch Buttelli – Doutor em Teologia Sistemática pela Faculdades EST, tendo realizado parte de seu doutorado na Faculdade de Teologia da Universidade de Stellenbosch, África do Sul. É professor no curso de Ciências da Religião e assessor de Cultura e Extensão do Centro Municipal Universitário de São José (USJ). Também é ativista pelos direitos do povo palestino, atuando na iniciativa Kairós Palestina Brasil.

 

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