Paz: construção e desconstrução pela mídia

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Magali Cunha

Ricardo Alvarenga-

Entrevista que produzimos para a Revista da Arquidiocese de Vitória. Conversamos com a pesquisadora de mídia, religião e política Magali do Nascimento Cunha, que é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo e membro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). O fio condutor da conversa foram os conflitos mundiais, seus desdobramentos, motivações e possíveis saídas desse contexto. 

Em suas respostas, a professora nos conduz a uma reflexão sobre o papel indispensável das mídias na construção do imaginário e na legitimação de discursos de ódio e intolerância. Destaque também para a importante frente de mudança encabeçada pelas mídias alternativas, que constroem um discurso menos influenciado por aspectos políticos e econômicos, proporcionando de fato uma humanização da mídia, o que certamente pode favorecer um cenário de mais diálogo e de paz no mundo.

Professora, há alguns anos, em diversos países do mundo, povos estão tendo que viver em verdadeiros cenários de guerra. Mas, recentemente, com os atentados na França, essa questão emergiu na mídia e principalmente nas mídias sociais (Facebook, Twitter e Instagram). Qual a sua avaliação sobre a cobertura midiática desse tema, levando em consideração que outros países sofrem constantemente esses atendados, mas sem ampla cobertura dos grandes sistemas de comunicação?

Magali Cunha – A cobertura noticiosa internacional das grandes mídias no Brasil sempre foi colonizada. Isto quer dizer: submetida aos conteúdos das mídias no Norte Global. Isto é histórico por conta do predomínio das agências de notícias internacionais que estão localizadas, desde os seus primórdios, na Europa e nos Estados Unidos. Há pesquisas que mostram claramente que os conteúdos noticiosos das agências é claramente marcado pelos interesses geopolíticos dos seus países de origem e isso acaba sendo reproduzido no noticiário dos veículos que as reproduzem. São pouquíssimos os veículos nacionais que têm correspondentes internacionais, mas ainda estes compõem seus textos com material que coletam das agências, como outras pesquisas também revelam. Isto acaba se refletindo nas mídias sociais, pois parte do conteúdo delas é reprodução do que se veicula nas grandes mídias. Nesse sentido, o que acontece nos Estados Unidos e na Europa acaba tendo mais repercussão do que o que acontece em países e regiões mais periféricas. Claro que, no caso da França, lemos e assistimos a manifestações de solidariedade importantes e necessárias. No entanto, fica o questionamento: e os outros casos até mais graves? Poderíamos citar a Síria, o Afeganistão, a Nigéria, o Sudão e muitos outros locais da chamada “periferia do mundo”, que vivem situações de terror e morte com resultados mais dramáticos do que o que foi experimentado em Paris. Denomino este processo “solidariedade seletiva”, resultante justamente deste contexto de colonização das mídias.

Grande parte desses conflitos, que tem proporção de guerra, envolve uma questão religiosa de fundo. A senhora acredita que isso proporcione intolerância religiosa e discriminação das religiões de raiz islâmica?

Magali Cunha – Sim, sem dúvida. Há vários exemplos de conflitos políticos que têm relação com grupos religiosos: aqueles que envolvem o budismo na Índia, o Sri Lanka, na China, no Tibete; os movimentos por independência da Irlanda do Norte que opunham católicos aos anglicanos britânicos; e, claro, os mais recentes grupos radicais entre os islâmicos. Quando estudamos a fundo estas questões políticas, vemos que têm quase nada de religiosas. Na maior parte deles, há uma identidade religiosa de grupos que lutam por suas bandeiras políticas, mas estes não são representantes de suas religiões. No entanto, o emblema religioso acaba sendo ressaltado, seja pelos próprios grupos que o usam para fins de embates ideológicos (como o faz o grupo denominado Estado Islâmico), seja pelas mídias que veem na questão religiosa um ingrediente a mais para o apelo ao drama dos atentados e das guerras. O problema é que isto estigmatiza os grupos religiosos e, de fato, gera ações de intolerância da parte de quem se vê impelido a combater a violência.

Os atendados terroristas acabaram por estigmatizar os povos do Oriente Médio. Quais seriam alguns dos impactos desse processo para as nações?

Magali Cunha – A superficialidade no trato e na compreensão da vida desses povos nos âmbitos social, político, econômico, cultural. Passa-se a compreender estes grupos humanos a partir do olhar da violência que sofrem e que praticam, mas nada ou quase nada se apreende deles como agrupamentos sociais que têm suas dinâmicas nas diferentes esferas da vida. Isto é péssimo, pois promove preconceito e discriminação, o que pode ser visto em relação aos refugiados. Promove também fechamento ao intercâmbio cultural, às parcerias econômicas. Vide o caso do diálogo Brasil-Irã que foi duramente criticado nas mídias, com base puramente nos estigmas construídos ao longo das últimas décadas em relação a este país.

Alguns comentários nos meios de comunicação especulam o aceno de uma terceira guerra mundial, influenciada também por questões religiosas. Essas especulações teriam coerência?

Magali Cunha – Quando falamos em terceira guerra mundial, temos em mente aquelas imagens dos conflitos do século XX, que envolveram a Europa e países não europeus aliados dos lados opostos. É outro tipo de cultura de guerra. Ele não existe mais. As guerras hoje são marcadas por recursos tecnológicos que evitam ao máximo as incursões presenciais (os embates físicos de exércitos) e pelas estratégias de inteligência. O terrorismo em alta também é uma característica diferenciada do que foram os conflitos armados do passado. O Papa Francisco disse que já estamos vivendo uma terceira guerra e esta mundial, de fato, pelo número de conflitos armados espalhados pelo planeta. Nesse sentido, pensando nestas transformações na cultura da guerra, creio que o Papa tenha razão.

Nas diversas assembleias do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), certamente, os conflitos pelo mundo já foram mencionados. Qual o posicionamento do CMI sobre essa questão e quais as contribuições que o conselho tem dado na busca de saídas para esse cenário?

Magali Cunha – O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) foi inaugurado em 1948 num contexto de guerra. Na verdade, duas das fontes que deram origem ao movimento ecumênico que tornaram possível a criação do CMI foram a Aliança Mundial para a Promoção da Amizade Internacional através das Igrejas (AM) e o movimento Vida e Ação (VA), ambos gerados pelos movimentos internacionais cristãos pela paz, que intensificaram suas ações durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Com a fundação do CMI, em continuidade àquelas ações, foi criada a Comissão das Igrejas para Assuntos Internacionais, agência que permanece atuando no organismo trabalhando pela resolução pacífica de conflitos, pelo desarmamento e a reconciliação entre países e grupos.

Uma importante ação do CMI foi A Década Ecumênica de Superação da Violência (2001-2010), a fim de fortalecer os esforços e as redes já existentes de prevenção e superação da violência assim como inspirar a criação de outros. Paz e reconciliação foram as palavras-chave nesta ação que buscou sensibilizar para se perceber a violência nas suas multiformas: interpessoal, econômica, ambiental, militar, tanto na sociedade quanto nas famílias e até na Igreja. Estudos teológicos cristãos e interreligiosos dentro da temática foram promovidos e ações concretas foram realizadas no período, como o Programa Ecumênico de Acompanhamento à Palestina e a Israel, a Rede Paz na Cidade, a criação do Dia Internacional de Oração pela Paz (21 de setembro, mesma data do Dia Internacional da Paz, da ONU) e o Programa Cartas Vivas (pequenos grupos de homens e mulheres ecumênicos que visitam um país marcado por conflitos e violência para escutar, aprender e compartilhar problemas e para idealizar soluções para superar a violência e construir a paz, assim como para orar juntos pela paz na comunidade e no mundo).  A década foi encerrada em 2011 com a Convocatória Ecumênica Internacional pela Paz, realizada em maio de 2011 em Kingston, Jamaica. O encontro celebrou as realizações da Década e, ao mesmo tempo, estimulou pessoas e igrejas a renovarem seu compromisso em favor da não-violência, da paz e da justiça.
O próprio CMI procurou responder aos desafios da Década de Superação da Violência. Na 10ª Assembleia do CMI, realizada na Coreia do Sul, em 2013, foi lançado um convite aos cristãos de todo o mundo: engajarem-se numa Peregrinação de Justiça e Paz. O desafio foi assumido pelo próprio CMI em sua reunião de planejamento de ações até 2021.  O convite do CMI para a Peregrinação de Justiça e Paz tem uma mensagem importante: as igrejas estão numa peregrinação neste mundo, a caminho de outro mundo possível, como diz a Bíblia, de “um novo céu e uma nova terra” (Apocalipse). Vivem e trabalham por isso. A preposição “de” faz toda a diferença: não uma peregrinação pela justiça e pela paz, mas “de” justiça e paz. Significa que as igrejas precisam seguir no caminho por outro mundo possível, testemunhando e trabalhando a justiça com paz. Não mais uma forma de ativismo cristão e sim um compromisso com o Deus do “shalom”. Uma jornada “de” justiça e paz que os cristãos mesmos devem testemunhar, dentro de suas comunidades religiosas, entre elas e com as outras religiões, contagiando o mundo.

Geralmente, celebra-se no começo de janeiro o Dia da Paz Mundial. Nesse contexto em que vive o nosso mundo, quais apontamentos nos conduziriam para uma sociedade mais pacífica e fraterna?

Magali Cunha – Vou indicar um que tem relação com o meu trabalho: a humanização e a descolonização das mídias. As mídias tem um papel fundamental como mediadoras entre os grupos sociais: são veículos que tornam possível o intercâmbio de informações, a educação para o diálogo, a ampliação do conhecimento acerca de contextos distantes do público (a noção de aldeia global). Ocorre que com a colonização das mídias, mencionada aqui, e a partidarização em torno de interesses políticos e econômicos que as envolvem, elas não têm cumprido este papel. Portanto, é pelas mídias alternativas, tornadas mais visíveis pela internet com os tantos sites, blogs e as mídias sociais, que se torna possível esta humanização dos veículos, para além da política e da economia que os envolvem. Significa também um enfrentamento da colonização, à medida que se garante espaço para os grupos periféricos. E ainda tem um elemento importante: que os próprios usuários das mídias digitais se desarmem e aprendam a fazer uso destes espaços com diálogo respeitoso, ainda que haja divergências. Tudo isto faz parte do processo de humanização tão urgente para que haja paz.

Fonte: http://www.palavracriadora.com/

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