Paz sem justiça é falsa paz

Protesto relembra a chachina de Vigário Geral no Rio de Janeiro

Protesto relembra a chachina de Vigário Geral no Rio de Janeiro

Por Magali do Nascimento Cunha-

Na Colômbia, onde estou neste momento, ou na periferia brasileira, a religião precisa servir aos desamparados e não se aproveitar da situação.

Sou nascida cristã. Quando criança, passei por batismo e catequese católica-romana e na adolescência, em função de convivência e convite de um grupo de jovens, me tornei protestante, integrante da Igreja Metodista, na qual congrego até o presente.

Devo muito à formação cristã que recebi. Muito do que sou e da visão de mundo que construí, da busca pelo Reino de Deus e sua justiça, se deve à leitura da Bíblia à luz da vida e da compreensão de que amar a Deus é amar o mundo e tudo o que nele existe.

Esta visão se ampliou com o meu engajamento no movimento ecumênico, experiência marcante da juventude. Nele aprendi que ser cristã é ser promotora da paz com justiça, e que nesta pauta estão o respeito, o diálogo e a cooperação entre as religiões.

Por isso, destaco a atuação do Conselho Mundial de Igrejas, associação de 350 igrejas cristãs, evangélicas e ortodoxas, tendo a Igreja Católica Romana como observadora. Criado em 1948, com sede em Genebra, Suíça, o CMI é a mais importante expressão do movimento ecumênico mundial, com sua histórica prática em prol da unidade cristã, da promoção da vida e do diálogo entre as religiões. Além disso, lidera esforços de paz com justiça, de busca dos direitos humanos e da sustentabilidade da vida.

A 10ª Assembleia do CMI (Coreia do Sul, no fim de 2013), lançou um convite aos cristãos e aos seres humanos de boa vontade de todo o mundo: unirem-se numa peregrinação de justiça e paz. Ele foi assumido pelo próprio organismo na definição de suas atividades para o período entre assembleias que vai até 2021.

O convite para peregrinação tem uma mensagem importante: os cristãos são peregrinos neste mundo, a caminho, como diz a Bíblia, de “um novo céu e uma nova terra” (livro de Apocalipse). Vivem e trabalham por essa causa. Por isso deve ser uma peregrinação “de” e não “por” justiça e paz. Não mais uma forma de ativismo cristão e sim um compromisso com o Deus do “shalom” (paz completa).

Uma jornada “de” justiça e paz que os cristãos mesmos devem testemunhar, dentro de suas comunidades religiosas, entre elas e com outras religiões e todas aqueles que, mesmo não religiosos, estão sensíveis à urgência da paz com justiça, contagiando o mundo.

Compartilho aqui estas ideias, inspirada pelo que estou aprendendo nestes dias. Estou em Bogotá, Colômbia, onde cheguei em 5 de fevereiro, para participar da reunião anual do Grupo de Referência da Peregrinação de Justiça e Paz do CMI, do qual sou integrante. A cada ano o grupo se reúne em um país que vive situações-limite de falta de justiça e  paz.

Paz sem justiça é falsa paz
O acordo entre o governo colombiano e as Farc precisa atender as vítimas (Foto: Reprodução)

 

A Colômbia é o terceiro país visitado. Em 2016 o grupo esteve na Palestina e em Jerusalém, e em 2017, na Nigéria. Nessas reuniões, o Grupo de Referência, composto por 25 nomeados de diferentes países e igrejas cristãs, mais um judeu e um muçulmano, colabora com o CMI, a partir do contato com grupos religiosos e movimentos sociais dos locais visitados, para encontrar caminhos para ações mais efetivas em busca da paz com justiça.

Um dos pontos-chaves da nossa tarefa aqui na Colômbia é reforçar as ações para que o processo de busca de paz com os acordos entre o governo do país e as guerrilhas, FARC e ELN, coloquem as vítimas (camponeses, populações indígenas e de matriz africana) no centro de todas as negociações e garantam o justo atendimento às necessidades básicas das regiões afetadas para uma vida digna.

Por isso estamos ouvindo lideranças de grupos religiosos e movimentos sociais, do governo, da ONU. Um dos elementos mais enfatizados é o importante lugar das religiões na construção dos processos de paz e ao mesmo tempo o risco de sua instrumentalização para servir a quem se beneficia da manutenção da violência.

Tem sido impossível para mim não relacionar a busca de paz na Colômbia com a nossa própria no Brasil, em especial nas grandes cidades massacradas pelo poder paralelo de ilícito (para usar o termo que se usa no contexto colombiano) e pelo descaso do poder público com a paz com justiça.

Como se discute na Colômbia, as políticas governamentais baseadas na lógica da repressão, que não coloca as vítimas das comunidades vulneráveis no centro das ações, só tende a produzir mais violência e práticas ilícitas.

Não posso esquecer também da quantidade enorme de igrejas presentes nessas comunidades vulneráveis das grandes cidades brasileiras e do papel que precisam desempenhar como instrumentos de paz.

Fica, então, a indicação: nos contextos presentes em que vítimas das inocentes perecem pelas práticas ilícitas que as atingem ou pela ausência de políticas que priorizem a paz com justiça, seja em terras longínquas ou na esquina mais próxima, fica o chamado para uma peregrinação de justiça e paz. Que comunidades e líderes religiosos convertam seus discursos em palavras e ações que construam vivências de paz justas e duradouras.

Publicado na https://www.cartacapital.com.br

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