Muitas Faces, Muitos Jeitos

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Paulo Ueti-

Quando há um diálogo verdadeiro, ambos os lados estão dispostos a mudar.

Thich Nhat Hanh

“…ora, vocês são o corpo de Cristo e são membros deles, cada qual a sua maneira.” 1 Coríntios 12:27

Porque “… Deus, nosso Salvador, que quer que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao conhecimento da verdade”. Pois, há um só Deus, e um só mediador entre Deus e a humanidade, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por TODAS AS PESSOAS (1Tim 2:4–6a)

Cada vez mais somos colocadas/os frente a frente com a questão da diversidade e da unidade. A modernidade e ‘pós-modernidade’ trouxeram à tona este desafio da convivência humana, tão antiga quanto o próprio mundo. Como conviver com o que é diferente de mim ou do que minha sociedade determinou como “norma” (normal)? Como ‘harmonizar’ com a criação de Deus? As estatísticas demonstram que ser diferente da “maioria” tem sido motivo de imputação de atos violentos, incluindo assassinato. A educação para a normalidade (seja normal, seja como as outras pessoas) tem demonstrado nociva e adoentadora das pessoas como indivíduos e das sociedades. O diferente se tornou intolerável, herege, impossível de conviver, precisa ser apagado da existência. Isso é perverso e está tomando conta dos discursos religiosos entre nossas comunidades cristãs.

Para muitas teologias, Deus revelou-se aos seres humanos através de sua capacidade (ou será sua essência?) de relação. É Deus sempre que toma a iniciativa. Pela Palavra de Deus o mundo foi criado. Do caos para a ordem. E a ordem criada é diversa, plural, colorida. A uniformização (hegemonia) é um caminho tortuoso e nada agradável a Deus. Ela é violenta, desumanizadora e idiotizante. O texto do Gn 11:1–9 sobre a tentativa de construir a torre de Babel para “dominar” o mundo foi radicalmente rechaçada por Deus, que devolveu cada um a sua cultura e língua, o que como efeito colateral, segundo o texto, causou confusão. Na continuidade disso temos a experiência de Pentecostes, onde todas as pessoas, desde o seu lugar, sua língua, sua cultura, podem compreender a mensagem do Evangelho e comprometer-se como comunidade, sem deixar de ser o que são, mas entrar num processo de conversão continua onde há perdas e ganhos. Assim são as relações.

Deus nos ama do jeito que somos, para sermos algo mais para Ele e para o Mundo. Deus nos encontra onde estamos para caminharmos e trabalharmos em comunidade por um mundo “paradisíaco”, onde a violência, a tortura e o assassinato não sejam o nosso dia-a-dia, mas a harmonia, o diálogo e o respeito mútuo. “Até a ingratidão inflama o amor de Deus” (Os 11:1–9) para conosco, e “nada pode nos separar do amor de Cristo” (Rom 8:31–39).

Para muitas leitoras/es de Santo Agostinho, particularmente suas Confissões, esse é um tema recorrente. Apesar de ele celebrar efusivamente e insistir na busca de Deus que feita pela humanidade, ele lembra sempre de que Deus é o que sempre tomou a iniciativa. Ele quer saber onde estamos, chega até nós, onde estamos, transborda sua graça e sua misericórdia para nós do jeito em que nos encontramos. Vale a pena reler essas obras. Deus tomou (e continua tomando de acordo com nossa fé cristã) a iniciativa de, por amor incondicional, revelar-se e auto comunicar-se. Poder-se-ia dizer então que uma das privilegiadas experiências de Deus se faz na relação. Deus é Relação (Deus é Amor. 1Jo 4:19). Deus vai até aquela pessoa que o negou, traiu e a seduz novamente, porque Ele sempre ama e o amor motiva o movimento de encontro daquela/e e daquilo que é diferente de nós mesmas/os (Os 1–3). É na outra pessoa (mesmo ingrata e considerada pecadora) e na natureza (hoje em dia violentada e em sofrimento infringido) que experimentamos a revelação de Deus: “…Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25:40). “Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4:20). A tradição bíblica é testemunha desta ‘conexão’ total entre Deus e o povo.

Durante nossa história foi-se esquecendo a fundamental relevância profunda (ontológica) da diversidade, do colorido, dos gradientes, do crepúsculo e do amanhecer. Cada vez mais somos chamadas, patrulhadas e forçadas (sofremos bullying) para sermos uniformes, sermos iguais a todo mundo: dizer as mesmas palavras, realizar os mesmos ritos do mesmo jeito, utilizar os mesmos manuais, dizer a mesma ideo-teologia, organizar-se do mesmo jeito.

Por isso é fundamental voltar nosso coração e nossa mente para a espiritualidade bíblica: centrada na misericórdia e no Reinado de Deus. Paulo nos ajuda a olhar para essa realidade carismática e de poder na igreja primitiva e isso lança luzes (e com elas vêm as sombras inevitavelmente) para um ‘retorno ao primeiro amor’, uma mirada ao projeto original de Jesus. Paulo utiliza a metáfora do corpo (um escândalo para a época e para algumas pessoas e teologias/espiritualidades atuais também) para falar da igreja como sacramento do Cristo: os membros são, na forma, na essência e no propósito, diferentes, mas todos igualmente necessários e com a mesma dignidade para o funcionamento do corpo.

Desenvolve-se aqui o que se chama em nossa teologia de ‘o discipulado de iguais’. Como compreender essa premissa teológica enraizada em toda a tradição bíblica hoje em dia? Como compreender a diversidade de carismas e sua equidade na vida da igreja (da instituição e dos fieis)?

Neste artigo gostaria de refletir especialmente sobre a posição das pessoas que foram enquadradas pelos sistemas políticos, econômicos e religiosos como marginais neste processo de discipulado e de apostolado/missão. Não se pode prescindir de ninguém: “Mas se Deus dispôs cada um dos membros do corpo, segundo a sua vontade. Se o conjunto fosse um só membro, onde estaria o corpo? Há portanto, muitos membros, mas um só corpo. Não pode o olho dizer à mão: ‘Não preciso de ti’, nem tampouco pode a cabeça dizer aos pés: ‘Não preciso de ti’. Pelo contrário, os membros do corpo que se parecem mais fracos são os mais necessários, e aqueles que parecem menos dignos de honra do corpo são os que cercamos de maior honra, e nossos membros que são menos decentes, nós os tratamos com mais decência…” (1Cor 12:18–23)

O cristianismo primitivo
As primeiras comunidades cristãs estavam organizadas de maneira muito particular em cada localidade no tempo de Paulo. Pudemos perceber no decorrer da história das igrejas primitivas o aflorar de várias formas de ser discípulos e discípulas de Jesus Cristo. Portanto, não é possível dizer que houve um cristianismo, mas sim vários cristianismos. Nesta plurifacetária característica do movimento que emergiu de Jesus e cresceu pelo império, também se deve destacar uma de suas principais marcas: a igualdade entre os diferentes. Especialmente no cristianismo Paulino esta força de igualdade é decididamente motivo de alegria para os membros das comunidades, mas também fonte de conflitos e tensões.

O cristianismo primitivo desenvolveu-se através da ‘Igreja em sua casa’ (cf. Rm 16:5; At 18:2–4.18.26) e da atividade missionária de homens e mulheres que propagavam a fé cristã através das cidades do mundo conhecido. A comunidade se torna um elemento decisivo nesse novo jeito de experimentar Deus. Estabelece novo tipo de convivência, é espaço de acolhida e escola de aprendizado de como ser de Deus e uma revelação dele no mundo. Foi um espaço de muita diversidade: pobres e ricos, mulheres e homens, livres e escravos se juntavam no mesmo lugar e partilhavam da mesma palavra e da mesma mesa. É claro que isso gerou vários conflitos no interior da comunidade cristã: como enfrentar o escravagismo, a liberdade das mulheres, os de dupla tradição religiosa, etc.?

Na Igreja de Corinto a diversidade dos membros parece ter provocado diversos problemas internos, tanto de ordem doutrinal, mas também de relações humanas, que deixaram o Apóstolo Paulo deveras preocupado. A Carta aos Coríntios foi uma tentativa dele de procurar resolver estas contendas que dividiam. E a solução não foi todo mundo ser do mesmo jeito e muito menos se adequar ao sistema jurídico, moral e político/religioso vigente. Ao contrário, foi ir na contra-mão. Foi propor um sistema que desafiava a ordem considerada natural. “E não sede conformados com os esquemas deste mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.” (Rom 12:2)

Relações novas
A leitura do texto e nossa inserção na comunidade cristã coloca-nos num movimento que quase não tem mais volta. Mudamos radicalmente nosso paradigma para olhar o mundo e sua criação, não mais com os olhos e o coração do pecado, mas pela graça de Deus que abunda, mesmo entre nossos limites.

“… se morremos com Cristo, temos fé que também viveremos com ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentro os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele. Porque, morrendo, ele morreu para o pecado uma vez por todas; vivendo ele vive para Deus. Assim também vós, considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus.” (Rm 6:8–11)

Este texto, da liturgia batismal, é lido na vigília Pascal. As pessoas que entram na comunidade de fé ouvem esta exortação e se comprometem a mudar de vida (metanóia). É um chamado, uma exigência, para vivermos uma vida nova de um jeito novo. Não é mais compatível com a vida cristã, com o batismo e com a educação na fé, auto-centramento, desejar o mal, exercer ações de bullying e de preconceito, humilhar as pessoas, achar-se melhor ou mais merecedora que alguém, advogar pela exclusão de alguém da comunidade, ser intolerante com o pecado e com a diferença. Ser de Cristo é uma exigência que cansa e que só pode ser realidade em comunidade, na confiança de que nos ajudamos mutuamente e nunca deixamos ninguém para trás, na certeza de que o amor de Deus é para TODAS as pessoas. Somos convidadas a uma experiência diversa na convivência, nas teologias, nos ritos e na espiritualidade. Temos visões de mundo diferentes e isso não é um defeito, mas uma qualidade que deve ser mantida e incentivada para que haja diálogo solícito, misericordioso e que nos coloque a todas/os no caminho da conversão para a religião que agrada a Deus (ler Isaias, Jeremias, Tiago). Só é um problema quando essa visão traduz exclusão, preconceito, bullying e privilégios. Qualquer tentativa de hegemonização choca com o projeto de Jesus. Todas/os nós somos irmãs e irmãos na comunidade e para o Anglicanismo esse status da pluralidade é algo de nossa identidade. Temos o direito de ser diferentes. Não temos o direito de fugir da missão de Deus ou de deixar de nos esforçarmos para parecer com Jesus:

“Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante a humanidade. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.” (Fil 2:5–11).

Ora et Labora — Orar e trabalhar sempre para que não sejamos reprodutoras dos sistemas que criam privilégios e acumulam riquezas. Orar e trabalhar para que as pessoas em situação de mais vulnerabilidades sejam atendidas e para as que detêm privilégios, reconheçam essa condição e sintam-se compelidas a partilhar os seus recursos. Orar e trabalhar para que sejamos pessoas e igrejas hospitaleiras (que acolhem e que cuidam de todas e todos indistintamente). Orar e trabalhar para que nossa capacidade de amar seja maior do que nossa tendência natural de excluir e odiar. Orar e trabalhar para que nossos discursos religiosos, nossas orações sejam expressões de amor e carinho, não de ódio ou discriminação.

Este é o constante desafio para nossas igrejas hoje. E também para nossas vidas pessoais, marcadas pela ação do Espírito de Deus, que ‘faz novas todas as coisas’.

“ Que o caminho seja brando a teus pés, o vento sopre leve em teus ombros. Que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas em teus campos. E até que eu de novo te veja, que Deus te guarde nas palmas de Suas mãos…” Bênção irlandesa

[i] Meditação escrita em preparação para a Confelider (Encontro de Lideranças da Igreja) da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, capítulo da Diocese Anglicana de Brasilia.

O autor é Filósofo, Teólogo e Biblista, da Diocese Anglicana de Brasília, Catedral da Ressurreição, atualmente trabalhando para a Comunhão Anglicana na Anglican Alliance, membro da Comissão para a Unidade, Fé e Ordem da Comunhão Anglicana, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica — ABIB e da Society of Biblical Literature-SBL

 

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