A criação geme pela Amazônia

BRASIL-

Nas últimas semanas de intensa mobilização pela Amazônia, aconteceu o debate ecumênico “A criação geme pela Amazônia”, organizado por QONAKUY (Rede de Universidades Evangélicas da América Latina, Central e Caribe) e AIPRAL (Aliança de Iglesias Presbiterianas e Reformadas da América Latina).O debate endossou a campanha Amazoniza-te, uma iniciativa conjunta da REPAM (Rede Eclesial Panamazônica) e outras organizações, e teve o apoio da UniReformada.

Aqui destacamos a contribuição de Mara Manzoni Luz, diretora regional do CREAS (Centro Regional Ecumênico de Assessoria e Serviço) no evento, que pode ser acessado integralmente nesse link. O debate foi mediado por Humberto Shikiya (QONAKUY) e teve a participação de João Gutemberg Sampaio (REPAM), Darío Barolín e Agnaldo Gomes (AIPRAL), Milton Mejía (UniReformada) e Gerardo Oberman (Rede Crearte). Neste Dia da Amazônia fazemos eco às vozes de Mara e de todas as pessoas que atuam pela dignidade humana na região.

A Amazônia

Esta vasta área, que cobre 9 países na América do Sul, possui metade das florestas tropicais do mundo e abriga 15% da biodiversidade terrestre. Vem sendo saqueada há séculos, isso não é uma novidade. Me lembro da primeira vez que a pisei, em 1983, como estudante de antropologia, em uma visita à comunidade indígena Gavião Pykobjê. Naquela época, esse pedaço do estado do Maranhão já estava na mira de interesses empresariais, como possível rota de transporte de produtos da mineração vindos do Pará até o Atlântico. Nos últimos anos, estive acompanhando as comunidades quilombolas de Oriximiná, Pará, que sofrem os impactos sociais e ambientais da mineração de bauxita, e visitando as comunidades indígenas Tacana de Rurrenabaque, Bolívia, unidas frente à construção de uma barragem, e vejo que as ameaças dos anos 80, ainda que terríveis, não eram tão sofisticadas como a devastação que vemos hoje.

Nos últimos anos a Amazônia sofreu, com diversas intensidades, o crescimento das desigualdades estruturais, as invasões de terra, a exploração mineira, a flexibilização de leis ambientais, a criminalização de seus defensores e defensoras, o assassinato de líderes locais, muitas vezes com o apoio de governos e grandes transnacionais. Fatos passaram a ser manipulados, como por exemplo os incêndios, que são narrados como frutos de secas ou ainda culpa das comunidades, que querem queimar para plantar. São mentiras, para que não se veja que são resultado de ações criminosas orquestradas pelo agronegócio e pelo extrativismo. São ações muitas vezes motivadas pelos próprios discursos das autoridades dos países – seja por uma política chamada “desenvolvimentista”, pelo entreguismo a interesses econômicos das potências do norte, por ganância, pela falta de respeito total não somente à floresta, mas aos 34 milhões de pessoas que a habitam. Entre elas, 380 povos indígenas, dos quais 140 vivem em isolamento voluntário. São povos que já passaram por todas as ameaças possíveis, resistiram a tudo, e escolheram viver e proteger suas terras ancestrais, seus rios, suas florestas.  

Agora, esses povos têm suas vidas, mais uma vez, em risco pela pandemia de Covid-19, que está afetando, indistintamente, bebês (o caso Yanomami), a juventude e, principalmente, anciãs e anciãos. Como disse um líder Waorani do Equador, “se nossos ancestrais morrem, nosso povo deixará de existir”. A cada dia é devastador ver as notícias de lideranças mortas pela pandemia e os riscos às populações em isolamento voluntário. Como disse o líder Ashaninka Francisco Pikãyo, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá, “a pandemia é a nova arma química da conquista”. Por outro lado, nos enche de esperança ver a multiplicação de lideranças jovens ocupando espaços em defesa de seus povos.

De acordo com a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e a Rede Eclesial Panamazônica (REPAM), até quarta-feira 19 de agosto, a população de povos indígenas contaminada era de 44.881; 1.442 pessoas mortas e cerca de 221 povos/nacionalidades afetados na região Panamazônica. Brasil, Peru e Colômbia lideram essa triste estatística.

No Brasil[1], não se trata de mais uma pandemia nos últimos 520, mas de um genocídio intencional via vetos do presidente da República à lei que pretendia dispor medidas emergenciais para o enfrentamento da pandemia entre povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Isso afeta todo o território nacional, mas na Amazônia, com as distâncias e as vulnerabilidades existentes, a negação do acesso à água potável, do atendimento diferenciado à saúde, do direito à conectividade para a comunicação com áreas mais isoladas, associadas à lentidão das ações de ajuda, são uma explícita violação dos direitos humanos. O que séculos de exploração não alcançaram, por resistência dos povos amazônicos, se tenta agora usando a pandemia para avançar o desmatamento e assim as fronteiras agrícolas e o extrativismo.

E o movimento ecumênico?

Historicamente inúmeras iniciativas em defesa da Amazônia por parte do mundo ecumênico local, regional e internacional foram desenvolvidas, seria impossível nomear a todas. Mais recentemente, em 2019, prévio ao Sínodo Panamazônico da Igreja Católica, a iniciativa ecumênica de “Ação solidária global pela Amazônia”², impulsionada por Christian Aid América Latina e Caribe, acompanhada por CONIC – Brasil, ISEAT – Bolívia, Comissão Intereclesial de Justiça e Paz – Colômbia, CREAS, Fórum da Aliança ACT Brasil, entre outras entidades, foi uma iniciativa importante para fortalecer, de maneira mais ampla, as vozes proféticas em defesa da Amazônia.

Hoje CREAS e Koinonia do Brasil, juntamente com Christian Aid, desenvolvem um projeto cujo objetivo principal é fortalecer a capacidade do diálogo interreligioso e ecumênico na região Amazônia – com prioridade para Bolívia, Brasil, Colômbia e Peru – para a dignidade humana e os direitos das comunidades indígenas e negras. As igrejas latino americanas e as organizações ecumênicas e baseadas na fé têm sido historicamente cruciais para acompanhar estas pessoas por uma vida plena, com justiça, igualdade e sustentabilidade. Agora, com as crescentes ameaças econômicas e sociais, o conservadorismo religioso e a violência, um novo vigor ao diálogo ecumênico e interreligioso na região torna-se fundamental.

Em nosso plano de ação 2020, a Aliança Interreligiosa para a Agenda 2030 tem o objetivo de incidir para que os povos indígenas e as comunidades tradicionais da Amazônia obtenham a garantia do controle da terra, seus bens comuns e sua saúde, na perspectiva da Casa Comum. Estamos trabalhando no sentido de amplificar as iniciativas em rede baseadas na fé, em defesa dos povos indígenas da Amazônia, frente ao incremento dos impactos da pandemia e a exploração dos territórios e da floresta.

Segundo a Encíclica Laudato Si, a Amazônia, assim como outros espaços territoriais indígenas ou comunitários, não é somente um espaço geográfico, mas também é um lugar de sentido para a fé ou a experiência de Deus na história. “Na Amazônia se manifestam as ‘carícias de Deus’ que se encarna na história (cf. LS 84).”[2] Tendo isso como inspiração e sendo partes de uma comunidade ecumênica e interreligiosa em solidariedade com as comunidades da Amazônia, devemos fortalecer nosso compromisso no sentido de seguir:

1) Pressionando os Estados para que garantam que os povos indígenas, quilombolas e as comunidades tradicionais ameaçadas tenham acesso e controle sobre a terra e seus bens comuns e acesso à saúde em tempos de pandemia;

2) Denunciando a ação nefasta de missioneiros proselitistas que já tanto mal trouxeram a gerações passadas e que hoje, como parte de um projeto fundamentalista econômico, social, cultural e religioso, aliado ao agronegócio, buscam apoderar-se dos territórios;

3) Defendendo aos defensores e defensoras de Direitos Humanos e da natureza, que vêm sendo constantemente ameaçados, mediante mecanismos eficazes de denúncia e proteção, e contra as tentativas de criminalizar as lutas dos povos da Amazônia;

4) Apoiando as comunidades locais na promoção de alternativas econômicas sustentáveis e a fazer frente ao sistema econômico vigente, enfrentando os desafios das crises climáticas na região;

5) Desenvolvendo uma espiritualidade ecológica que nos ajude a escutar o que o Espírito nos diz, sentindo-nos parte da Casa Comum e de todo o mundo habitado, começando por nossas congregações e comunidades de fé;

6) Apoiando organizações locais e iniciativas baseadas na fé no desenvolvimento destes objetivos, nos mantendo sempre informados, desafiantes e ativos no que é para nós um imperativo de fé: a defesa dos povos indígenas, da Amazônia e do meio ambiente!

Por isso, é essencial que as igrejas, organizações ecumênicas e interreligiosas do Sul e do Norte global continuem seus trabalhos proféticos de fé em ação. Necessitamos reforçar a consciência de que os perigos de extinção da Amazônia e seus povos estão ante todos e todas. Somente em solidariedade e na defesa da Casa Comum poderemos evitar que as perdas dos povos indígenas, as bibliotecas vivas, sejam uma perda para toda a humanidade, pois são eles os responsáveis pelo equilíbrio ambiental em sua totalidade e pelas florestas que ainda nos restam.

Encerro com a Coleta de Responsabilidade Ambiental do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil: “Alento de vida, que criaste em teu seio toda a ordem criada, nos ensina a respeitar a todas as criaturas, em testemunho vivo do Evangelho, que nos anima a lutar pela preservação da natureza, restaurando o ideal do Éden e a perfeição do que nos deu como presente”.

Mara Manzoni Luz é cientista social e educadora popular brasileira, diretora regional do CREAS, integrante da Aliança Interreligiosa pela Agenda 2030 e laica da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.


[1] En junio pasado, según estudio de la Coordinadora de Organizaciones indígenas de la Amazonia Brasileña (COIAB) y del Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazonia (IPAM) la tasa de contaminación (de 759) era 84% más alta para los pueblos indígenas, en comparación al promedio del país (de 413); la mortalidad (52 para cada 100 mil) era 150% más grande que el promedio brasileño, de 21 a cada 100 mil habitantes.

[2] Instrumentum Laboris. Sínodo Especial para la Amazonía. N°19

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