Magali Cunha na Carta Capital-
A relação entre religião e política, presente no Brasil desde que a Igreja Católica aportou nestas terras com os colonizadores portugueses, ganhou seu lugar em discussões populares.
Um ponto destacado é o que alguns chamam de “ameaça” evangélica, outros de “bênção de Deus sobre os evangélicos”, e diz respeito à intensificação da presença de cristãos na política, estimulada pela aliança do governo Bolsonaro com lideranças deste segmento religioso.
Este processo tem resultado em cargos no poder executivo, composições com o Poder Legislativo, fortalecimento de ocupações (e promessas de outras) do Poder Judiciário e interferência em políticas e ações públicas.
A ênfase no poder que tem sido alcançado pela parcela ultraconservadora do segmento evangélico é necessária nesta discussão sobre religião e política. No entanto, quando quem discute se fixa apenas nela, esconde o debate sobre a hegemonia católica neste campo e a emergência da presença dos grupos religiosos de matriz afro e suas demandas por democracia, respeito e liberdade religiosa.
De fato, é preciso afirmar que há uma força evangélica na política. Não é surpresa que candidatos e profissionais de marketing tenham detectado há algum tempo a tendência e, a cada eleição, seja frequente a prática de “pedir a bênção” a líderes evangélicos, seja da parte da direita seja da esquerda.
Também são recorrentes as pressões sobre candidatos e seus partidos, que nada têm de religiosos, a assumirem compromissos com a defesa de pautas da moralidade religiosa, em clara instrumentalização da religião cristã para conquista de corações e mentes de fiéis.
Temos assistido, ainda, a uma presença mais intensa de grupos religiosos atuando como ativistas políticos nos mais diversos movimentos e nas mídias sociais. Com base neste contexto, religião é, certamente, um tema de fundo, alimentador de campanhas e debates contundentes nestas eleições municipais de 2020.
“Nunca na história deste país” uma eleição teve tantos candidatos com identidade religiosa no motor da campanha.
Um levantamento publicado em 26 de setembro, a partir dos registros de candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral (https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/09/26/candidatos-religiosos-eleicoes-2020.htm), identificou pelo menos 5.555 candidatos que usam alguma referência religiosa no nome de urna (“pastor”, “padre”, “mãe”) ou que registraram “sacerdote ou membro de ordem ou seita religiosa” como ocupação.
São quase 2% dos 283.316 das pessoas que tiveram candidaturas registradas até 25 de setembro: 69 candidatos às prefeituras de cidades em todas as regiões do país e 11.481 concorrentes ao cargo de vereador.
Entre estes nomes de candidatos com identificação religiosa, 82% são “pastor/pastora” e “irmão/irmã”. Vale indicar que estes números não incluem postulantes a cargos municipais que são líderes religiosos reconhecidos, mas não usam esta identidade no registro eleitoral, como é o caso do prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.
Não se pode levantar o tema da “ameaça ao Estado laico” apenas quando se cria consciência da presença mais intensa de evangélicos na política
Nos debates sobre este tema, uma pergunta que sempre emerge diz respeito a este processo representar uma ameaça ao Estado laico. É muito importante que a presença de grupos religiosos na política não seja vista como ameaça à democracia ou à laicidade do Estado. Ao contrário, ela reflete a dinâmica da democracia, dá lugar à representação diversa no espaço público, e da cultura brasileira, em que as religiões têm importante papel na ordenação e na organização da vida.
A laicidade do Estado sempre foi um processo com avanços e retrocessos por conta da presença católico-romana na política há mais de 500 anos. Um exemplo destacado é o Acordo Brasil-Vaticano de 2010, com a concessão de vários privilégios à Igreja Católica pelo governo brasileiro. Outro, é o fato de a campanha pela retirada da noção de “gênero” do Plano Nacional de Educação, em 2014, ter sido liderada por católicos, bem como a criação do termo enganoso “ideologia de gênero”, ter ocorrido por estímulo do Papa Bento XVI, em discurso proferido em 2012. https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2012/december/documents/hf_ben-xvi_spe_20121221_auguri-curia.html.
Portanto, não se pode levantar o tema da “ameaça ao Estado laico” apenas quando se cria consciência da presença mais intensa de evangélicos na política. O Estado laico sempre foi frágil em nossas terras a começar com o poder da hegemonia católica, passando pela intolerância em relação às religiões de matriz afro (resultante do racismo estrutural), chegando à força dos fundamentalismos evangélicos no tempo presente.
A presença mais intensa de grupos religiosos no espaço público deve ser vista como indício do próprio avanço da democracia (com ambiguidades, é claro) e da pluralidade religiosa.
O que ameaça o Estado laico, e deve ser questionado e enfrentado, é que um grupo religioso imponha sua teologia e ética religiosa como regra para todos, crentes (com toda pluralidade que vivenciam) e não-crentes. Neste caso é a laicidade do Estado e a democracia que são colocados em risco.
Da mesma forma, o Estado laico está em perigo quando princípios religiosos são instrumentalizados por líderes e grupos políticos com vistas à busca de votos ou de apoio a implementação de necropolíticas.
Estas ameaças são evidentes no governo de Jair Bolsonaro (como já tratado em artigos desta coluna), que faz o jogo político para alcançar não apenas evangélicos, mas católicos e espíritas que têm identidade com sua postura autoritária, violenta, corruptora do poder público e aliançada com grupos econômicos exploradores da vida em todas as dimensões.
É por isso que religião e política devem ser discutidas, sim. E deve ser feito, crítica e coletivamente, sobretudo, em espaços em que a fé religiosa é praticada e pelos mais diferentes grupos e forças sociais que formam e informam sobre política.