A face dos fundamentalismos e seus avanços

O PRESIDENTE ELEITO JAIR BOLSONARO DURANTE REUNIÃO COM A BANCADA EVANGÉLICA NO GABINETE DE TRANSIÇÃO, NO CENTRO CULTURAL DO BANCO DO BRASIL, EM BRASÍLIA. FOTO: RAFAEL CARVALHO/GOVERNO DE TRANSIÇÃO/AG.BRASIL

Magali Cunha, Carta Capital

No meu último artigo para Diálogos da Fé, escrevi sobre o “fundamentalismo às avessas”. Agora volto ao tema para abordar a sua face: o fundamentalismo e sua expressão no plural, tal como se manifesta e avança, não só no Brasil, mas no continente sul-americano. Com isso, apresento às/aos leitoras/es os resultados de uma pesquisa coordenada por mim, e agora colocada à disposição, gratuitamente, no livro eletrônico “Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação”, publicado pela organização Koinonia: Presença Ecumênica e Serviço. 

O projeto da pesquisa nasceu da preocupação de igrejas e organizações baseadas na fé (OBFs), articuladas por meio do Fórum Ecumênico ACT Aliança Sulamericano (FESUR), que têm observado transformações na arena pública em termos sociopolíticos, econômicos, culturais e ambientais, no contexto de diferentes países. Estas mutações têm-se dado na forma de reações a avanços e conquistas no campo dos direitos de trabalhadores/as, de mulheres e de comunidades tradicionais (indígenas e afrodescendentes), seguidos de retrocessos e obstáculos políticos de vários tipos.

As organizações ligadas ao FESUR ressaltam como parte deste processo observado, evidentes crises políticas, aprofundamento das desigualdades, redução de espaços para participação da sociedade civil, aumento do assassinato de defensores dos direitos humanos. 

Pesquisa realizada no primeiro semestre de 2020 indica uma agenda fundamentalista que se apresenta eficaz na região, com grande capital econômico e político, fruto de seu capital religioso, que tem conseguido obstaculizar direitos sociais conquistados a duras penas, pelas populações confrontar sistemas judiciais nacionais, influenciar e, em alguns casos, desestabilizar democracias

A origem do termo remonta à tendência conservadora de um segmento protestante dos Estados Unidos, na virada do século 19 para o 20, enraizado na interpretação literal da Bíblia, classificada como inerrante, em reação à modernidade, (encarnada na teologia liberal e no estudo bíblico contextual com mediação das ciências humanas e sociais), em defesa dos fundamentos imutáveis da fé cristã. De lá para cá, a perspectiva fundamentalista foi se transformando, no interior do evangelicalismo mesmo, e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma matriz de pensamento, uma postura, ancorada defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade.

É fato que, nas últimas décadas, grupos religiosos e não religiosos surgiram no espaço público, em diferentes contextos do mundo, com ações que podem ser classificadas como “fundamentalistas”, caracterizadas como reativas e reacionárias às mudanças sociais. Nesse sentido, observa-se que o fundamentalismo se torna um fenômeno social que ultrapassa a dimensão religiosa, ganha um perfil mais diversificado e adquire caráter político, econômico, ambiental e cultural. Nessas atuações, certos “fundamentos” são escolhidos para persuadir a sociedade, a fim de estabelecer fronteiras e lutar contra “inimigos”, o que frequentemente resulta em um movimento polarizador e separatista, que nega o diálogo, a democracia e estabelece um pensamento único que visa direcionar as ações no espaço público. 

O caso mais emblemático no período contemporâneo na América do Sul é o Brasil, por conta da eleição do militar de extrema-direita Jair Bolsonaro à Presidência da República, resultante de um intenso processo reacionário a avanços no campo dos direitos sociais, ambientais, sexuais e reprodutivos. No entanto, observa-se que na Colômbia, no Peru e na Argentina, países também priorizados na iniciativa do FESUR, há processos que denotam situações similares, em períodos bastante próximos, indicando uma espécie de padrão fundamentalista de intervenção nas democracias e nas ações por direitos do continente. Em 2020, com a pandemia da Covid-19, este quadro foi agravado e toda esta conjuntura evidenciada. 

A pesquisa oferece várias descobertas, entre elas, a concepção da configuração de fundamentalismos político-religiosos na América do Sul, conceituando-os, no plural, a partir de uma reconstituição histórica de suas diferentes expressões. Nesse sentido, escapando do uso do termo que denota acusação e rótulo de contrários, o resultado mostra que os fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, num condicionamento mútuo. 

Também se identificou, como descoberta, que a matriz religiosa dos fundamentalismos em avanço não é desenvolvida por evangélicos tão só (do ramo histórico e dos pentecostais) mas também por católico-romanos, que se articulam em uma unidade oportunista em torno de pautas e inimigos comuns. 

As pautas fundamentalistas que unem lideranças e segmentos evangélicos e católicos são embasadas na moralidade sexual religiosa e na demonização e na inferiorização de indígenas e afrodescendentes. Elas servem ao sistema econômico neoliberal ao apregoarem a redução de políticas públicas (ação do Estado, portanto), relegando à “família” o cuidado com educação, saúde, trabalho, aposentadoria, e ao facilitarem as conquistas de terras de populações tradicionais pelo agronegócio e por mineradoras. Por isso a classificação “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos, movimentos sociais, sindicatos, partidos que buscam defender esses direitos e essas populações.

O relato da pesquisa, ouvidos dezenas de ativistas de direitos humanos e especialistas da academia dos quatro países, detalha como tendências fundamentalistas: reação aos direitos sexuais e reprodutivos; o discurso “pró-família”, como um projeto econômico-político; pânico moral e permanente embate com inimigos eleitos, como alimento do reacionarismo; ameaça a comunidades tradicionais; ações coordenadas pelos distintos grupos; a defesa Estado laico e da liberdade religiosa como “secularização estratégica”; avanço de novos movimentos fundamentalistas dos Estados Unidos na região (formação para políticos, “guerra cultural” e missões entre indígenas).

Ao final, são apresentadas dez possíveis estratégias de resposta, por parte das igrejas e OBFs, a esta realidade dos fundamentalismos político-religiosos exposta.  Em meio a tudo isto, o texto ressalta que é necessário considerar seriamente que há uma população para a qual as religiões dão sentido e estruturam a vida. Levar isto em conta é fundamental para se pensar o futuro que bate à porta, em meio a uma pandemia de coronavírus.

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