“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”: os riscos e os atravessamentos da escuta com os evangélicos

Em texto para o Usina de Valores, a teóloga,  e pesquisadora do Instituto Tricontinental, Angelica Tostes discorre, a partir do ponto de vista evangélico, sobre o *exercício da escuta* e como ele constantemente desafia a repensar certezas e construir novas formas de ver, sentir e pensar o mundo.

Por Angélica Tostes

Nosso corpo sente o mundo e o mundo nos atravessa em nossos sentidos. Uma relação que em como uma dança nos permite ser em potência. A religiosidade entra nessa composição musical da construção social dos territórios que vivemos, e claro, os ruídos sempre bagunçam e nos fazem reorganizar uma sonoridade da qual podemos mexer nossos corpos em compasso. Ruídos nem sempre são ruins, alguns, inclusive, nos fazem perceber o mundo de outra maneira, mas tem alguns que nos tiram dos eixos, nos tiram de nós mesmas e nos afastam de nossa classe, de nossos pares. O que faz o povo dançar, sentir o corpo?


“Como Zaqueu eu quero subir o mais alto que eu puder…”. As rádios, as televisões ligadas em plena madrugada, os fones de ouvido, o cantarolar Deus. Deus como som polifônico, som polissêmico, som polidoxo. Você já parou para ouvir sobre Deus, ouvir Deus, na boca do povo? Não, não pense que encontrará só bonitezas, ou negociações plurais da fé, é possível encontrar isso, mas talvez encontre um som meio perturbador e violento. Como o som tem poder, cria e destrói mundos! A voz de um líder religioso tem o poder de instigar a repulsa a sua própria carne, sua própria classe, faz destruir templos de outras tradições, faz mulheres se sentirem a causa do pecado no mundo, ou expulsar filhos LGBTI+ de seus lares.
A voz de um líder religioso tem o poder de dar dignidade para o quebrado, tem o poder de construir casas para seus fiéis, ou de incentivar jovens a lerem e se dedicarem a algum instrumento musical, tem o poder de fazer mulheres se sentirem empoderadas.


Barulhos, barulhos, barulhos! O filho de Deus está voltando! Barulhos, barulhos, barulhos! Quem de fato tem ouvido o que tem a dizer os evangélicos, ou melhor, as evangélicas? Já que são elas que constroem socialmente as igrejas, sejam elas pequenas ou grandes, em todos os lugares. Muito tem se falado do povo de fé evangélica, buscado em
definições: eles são assim, elas são assados, gostam disso, não gostam daquilo, a receita de bolo para dialogar é xyz. O som mais importante é aquele que é ouvido: você tem ouvido as mulheres evangélicas para seus textos, conjunturas políticas, construções teológicas? As últimas pesquisas (Datafolha, 2020) declaram que o rosto dos evangélicos é uma mulher, preta, pobre e periférica. São estas mulheres que mais sofrem nas mãos do racismo estrutural, do neoliberalismo, dos machismos cotidianos e encontram nas igrejas evangélicas espaços de acolhimento, mesmo que contraditórios muitas vezes. Elas são ouvidas na igreja, não necessariamente por seus pastores e pastoras, mas consideram que Deus as está ouvindo. E nós, estamos?


O exercício da escuta é uma tarefa das mais difíceis, principalmente nesse momento em que nos encontramos: todos querem falar! Em todas as situações, redes, plataformas virtuais-presenciais, nossa boca fala do que o coração está cheio, diz as Sagradas Escrituras, e por vezes nem sabemos o que está em nosso coração-mente. E o poeta já cantava: “Tanta gente equivocada faz mau uso da palavra. Falam, falam o tempo todo, mas não tem nada a dizer”!

Pensar, estudar e escrever sobre evangélicos no Brasil não é simples, antes, é uma rede de complexidade que requer uma sensibilidade hercúlea, pois, como diria uma companheira e irmã evangélica do MST: “a igreja é muita coisa”. Reducionismos sobre quem são, ou o que a igreja significa e é, não colaboram para o entendimento de quem busca
conhecer mais o campo. Há anos de pesquisas acadêmicas, produções de teólogos e teólogas, livros, artigos, fórmulas mágicas não funcionam, é preciso manter um pilar fundamental para a luta de classes: a formação! No caso do tema dos evangélicos, a formação é o estudo alinhado com a escuta daqueles e daquelas que professam a fé, sejam progressistas ou não.


Escutar é se arriscar! Penso que uma das razões que seja difícil escutar é porque somos constantemente desafiados a repensar nossas certezas, a não impor, mas construir juntos e juntas novas formas ver, sentir, pensar o mundo. Falo a partir dos entrelugares que habito: Os religiosos progressistas lidam com a racionalidade da fé, somos ensinados e
ensinadas, enquanto cristãos – mesmo conservadores -, a darmos respostas, como a Bíblia diz, falar da razão de nossa esperança, e por vezes temos dificuldade de ouvirmos nossas irmãs- irmãos que possuem posturas lambuzadas de fundamentalismo religioso, leituras excludentes, mas que também prejudicam e oprimem a si mesmas, entretanto não vislumbram outros horizontes de fé, muitas vezes por falta de oportunidade de diálogo. Já a esquerda não-
religiosa, ou não-evangélica, tem a dificuldade de ouvir que apenas o materialismo não é suficiente para a classe trabalhadora, e que ela tem fé, e é impossível tirar a fé do povo latino- americano, que através do colonialismo e de uma religião imposta, se reinventou a partir de um Deus que vai prover, que vai “entrar na casa, mexer com as estruturas e faze um milagre!”


Escutar é atravessar! A palavra diálogo é construída em duas partes, a primeira é o prefixo grego dia significa atravessar, e o logos, os cristãos estão mais familiarizados, é a palavra, o conhecimento. A escuta é o passo fundamental para o diálogo verdadeiro e profundo. Como uma construção é preciso ter as fundações firmes e fortes, que são construídas com o tempo, com confiança. É no diálogo que aprendemos mais de nós, mais do outro, mais da nossa cultura e sociedade. A expressão “jogar conversa fora” nunca é, de fato, fora, mas sim, é um jogo: de atravessamentos, de partilhar das pequenas coisas do cotidiano, da fé, das conquistas e respostas de oração, do ouvir atento, do falar e não monopolizar. Um jogo que são tijolos colocados nessa relação, que se funda a partir da confiança! Em tempos de tiktok: diálogos miojo – 2 minutos e uma foto -, bem, isso não é diálogo. No diálogo
somos atravessados pelo outro, e também o atravessamos, desde que ambos estejam abertos e receptivos a essa relação. Diálogo é desnudar-se perante o outro. Reforço o que Christian Dunker e o Cláudio Thebas escreveram: “Por isso a escuta também é a arte de nos tornarmos outros para nós mesmos, e deixar que o outro se torne um habitante de nós”.


Quando fui à Índia, em 2018, escrevi um pequeno pensamento assim, que serve tanto para as ruas movimentadas de Hyderabad quanto para os diálogos intensos, profundos e passageiros que tive pela vida: “atravessamos e somos atravessados. fazer a travessia entre as margens é uma tarefa complicada, requer muitos cuidados. significa ir com cautela, mas destemido. na travessia tudo pode acontecer. tropeços, atropelamentos, acidentes. atravessar as margens é correr riscos. mas não atravessar é ficar preso apenas uma visão da calçada. pelo medo não atravessamos as margens. medo do que pode acontecer no caminho, do quepodemos encontrar, de como vamos fazer a travessia de volta… atravessar a rua, as margens, as fronteiras é um processo transformador: não é possível voltar o mesmo. digo
mais, às vezes queremos apenas andar no meio da rua, entre as margens. ou ficamos nessa nova rua descoberta . atravessamos e somos atravessados: é um risco…”


Deus, essa palavra-canção que pode libertar em dança ou oprimir em uma marcha fúnebre e bélica. Como apontei, Deus é essa palavra polissêmica – cheia de sentidos, cheiros, sabores ; palavra polifônica – cheia de sons, melodias, silêncios; palavra polidoxa – cheia multiplicidade de opiniões, articulações, pensamentos, visões sobre o divino. É preciso escutar os deuses – e ouso dizer – e deusas da fé evangélica, os sons ruidosos pelo fundamentalismo, mas acolhedores tantas formas. Como o texto de Apocalipse nos convoca, aos pesquisadores e pesquisadoras, teólogas e teólogos, evangélicos progressistas, esquerda não religiosa: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça…”: os evangélicos e evangélicas, por eles mesmos!

A autora é teóloga feminista, mestra em Ciências da Religião. Atua como coordenadora da
pesquisa “Evangélicos, Política e Trabalho de Base” no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social,
um instituto ligado aos movimentos populares no Sul Global. Se dedica às áreas de diálogo inter-
religioso, múltipla pertença religiosa, teologias feministas e queer e evangélicos na política brasileira.

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