Carla Coutinho, Ceseep-
A América Latina, com sua rica diversidade cultural e religiosa, tem se tornado palco crucial para discussões sobre eco-justiça e emergência climática. Recentemente, o curso Latino-Americano de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso, que abordou a eco-justiça como um compromisso ecumênico no enfrentamento da desigualdade social e da emergência climática, promovido pelo CESEEP – Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular -, em São Paulo, reuniu potentes vozes para discutir a interseção entre fé, justiça ambiental e a crise climática. O curso foi organizado em parceria com o Programa de Gênero e Religião das Faculdades EST, de São Leopoldo. Durante quinze dias, pessoas de países como Brasil, Cuba, Equador e Costa Rica estiveram reunidas para partilhar experiências e discutir os temas explorados a fim de prosseguires e iniciarem microrrevoluções com o objetivo de ampliar o conhecimento, engajamento e soluções para o que vem ocorrendo com a Casa Comum. Este texto explora algumas das principais perspectivas e reflexões apresentadas durante o evento e destaca a importância de um ecumenismo que transcenda as instituições e se enraíze na prática cotidiana e na espiritualidade.
A coordenadora do curso, Angélica Tostes (CESEEP), iniciou sua palestra de forma impactante pontuando a necessidade de nomear os “monstros” que ameaçam a Terra e suas comunidades. Ela destacou como o capitalismo, o colonialismo, o racismo e até mesmo certas interpretações do que talvez possamos chamar de “cristianismos” têm contribuído para a degradação ambiental. Tostes argumentou que o fundamentalismo religioso, descrito como uma monocultura espiritual, é uma força poderosa que promove a uniformidade e a destruição da diversidade, tanto cultural quanto ecológica. Angélica ainda utilizou a imagem da monocultura agrícola para ilustrar como a produção em massa, impulsionada pelo capitalismo, causa danos irreparáveis ao solo e aos recursos hídricos. Em contraste, destacou práticas sustentáveis como a agroecologia e a agrofloresta, que promovem a biodiversidade e a saúde do ecossistema. Uma das questões levantadas por Tostes foi a ausência da juventude nos movimentos ecumênicos, enfatizando a necessidade de um ecumenismo mais libertador e inclusivo. Ela citou documentos importantes como a “Laudato Si” e “Fratelli Tutti” do Papa Francisco, que denunciam os mesmos monstros que ela mencionou. A palestra concluiu com um chamado à ação, incentivando os participantes a reconhecer e enfrentar seus próprios “monstros” internos e a trabalhar juntos para um futuro mais justo e sustentável.
Ivone Gebara, teóloga e filósofa brasileira levou sua perspectiva ecofeminista para o evento e destacou a importância de integrar as contradições dentro de nós mesmos e na teologia. Gebara criticou a teologia tradicional por ser antropocêntrica e propôs uma teologia que reconheça a interdependência entre todos os seres vivos. Ela enfatizou que as boas ideias sobre ecologia muitas vezes permanecem no papel e não se traduzem em ações concretas e ainda argumentou que a ecologia deve ser vista como um sistema de proteção contra as agressões e desvalorizações impostas pelo patriarcado e pelo capitalismo. Gebara trouxe um ponto de vista importante ao destacar a necessidade de mudar a noção teológica de “meu semelhante” para incluir todos os seres vivos, não apenas os humanos. Dentre as críticas feitas por ela estava a acumulação de bens como uma forma de “roubar” a vida de outras pessoas e seres. Assim, propôs uma teologia que promova a partilha e a sustentabilidade. Gebara concluiu sua palestra enfatizando a importância de uma teologia que seja prática e que envolva a comunidade e sugeriu que a teologia deve ser feita com as pessoas, não apenas para elas, e que devemos aprender a integrar os contrários dentro de nós mesmos para criar uma teologia mais inclusiva e sustentável.
A professora e responsável pelo Programa de Gênero e Religião da Faculdades EST, Marli Brum, discutiu com os participantes sobre a hermenêutica da conversão ecológica, propondo uma leitura da Bíblia que considere a criação como um elemento central. Ela destacou a importância de interpretar os textos sagrados considerando o contexto histórico e cultural, e de promover uma teologia que seja relevante para os desafios ecológicos atuais. Brun enfatizou que a teologia feminista deve desconstruir as interpretações tradicionais que perpetuam a hierarquia e a dominação. Ela citou exemplos bíblicos, como o texto de 1 Timóteo, que refletem a influência do patriarcado e do império romano. Marli ainda propôs uma leitura que valorize a interdependência entre todos os seres vivos e que promova a justiça ambiental e destacou a importância de um diálogo inter-religioso que seja mais do que estético, mas que envolva um compromisso real com a justiça ambiental. Em sua conclusão, Brun enfatizou a necessidade de uma teologia que seja prática e que envolva a comunidade em ações concretas de proteção e cuidado com a Terra.
Josias Vieira, fundador e pastor do movimento Nós na Criação, teólogo por formação e ecoteólogo por conversão, trouxe à tona o conceito de racismo ambiental, destacando como as comunidades marginalizadas, especialmente as racializadas, sofrem desproporcionalmente com a degradação ambiental. Ele apontou a necessidade de reconhecer e combater essas injustiças através de uma abordagem ecumênica que inclua todas as vozes, especialmente as marginalizadas. Vieira explicou que o racismo ambiental é uma forma de discriminação que coloca comunidades pobres e, principalmente, de cor em situações de risco ambiental, como a instalação de aterros tóxicos em áreas habitadas por pessoas negras. Ele citou exemplos históricos e contemporâneos para ilustrar como essas práticas continuam a afetar negativamente essas comunidades marginalizadas. Vieira também destacou a importância de aplicar as categorias de libertação propostas por Jesus Cristo para alcançar a equidade e a justiça e concluiu sua palestra enfatizando a necessidade de uma teologia que seja prática e que envolva a comunidade em ações concretas de proteção e cuidado com a Terra.
Em outro ponto de sua conversa com os cursistas, Josias Vieira apresentou a ecoteologia como uma forma de adiar o fim do mundo, inspirando-se na obra de Ailton Krenak. Ele propôs uma teologia que reconheça a presença de Deus em toda a criação e que promova uma relação holística e sustentável com o meio ambiente. Vieira destacou que a ecoteologia não é apenas uma parte da teologia, mas uma nova forma de fazer teologia que integra a justiça ambiental e a sustentabilidade. Ele citou pensadores como Teilhard de Chardin, Hildegarda de Bingen e Jurgen Moltmann, que contribuíram para a construção dessa perspectiva teológica. O fundador do Nós na Criação também enfatizou a importância de uma teologia que seja contextual e que responda às necessidades das comunidades locais. Vieira concluiu sua palestra propondo maneiras práticas de adiar o fim do mundo, como a implementação de práticas sustentáveis e a promoção de políticas públicas que protejam o meio ambiente.
Já a ecoteóloga feminista indigenista e ativista de direitos humanos, nomeada recentemente pastora da Igreja Batista do Caminho, no Rio de Janeiro, Priscilla dos Reis Ribeiro, trouxe a perspectiva do “Buen Vivir” (Bem Viver), uma filosofia andina que promove a harmonia com a natureza e a vida comunitária. Ela destacou a importância de desapegar-se do ego e dos bens materiais e de adotar uma visão de mundo que valorize a coletividade e a interdependência entre todos os seres vivos. Ribeiro propôs o termo “Cosmovivência Indígena” em vez de “teologia indígena”, destacando que essa abordagem vai além da teologia tradicional e integra a espiritualidade e a prática cotidiana. Priscilla enfatizou que as comunidades tradicionais têm muito a ensinar sobre teologia e que devemos aprender com suas práticas de cuidado e respeito pela Terra. Em sua conclusão, destacou a importância de uma teologia que promova a justiça social e ambiental e que seja relevante para os desafios atuais.
O curso foi encerrado com uma reflexão sobre a importância de integrar as diversas perspectivas apresentadas ao longo das semanas. Os participantes foram incentivados a levar as ideias discutidas para suas comunidades e a implementar ações concretas de proteção e cuidado com a Terra. A importância de um ecumenismo que vá além das instituições e se enraíze na prática cotidiana e na espiritualidade foi evidenciada. Os palestrantes destacaram a necessidade de uma teologia que seja prática e que envolva a comunidade em ações concretas de proteção e cuidado com a Casa Comum. O curso concluiu com um chamado à ação, incentivando os participantes a reconhecer e enfrentar seus próprios “monstros” internos e a trabalhar juntos para um futuro mais justo e sustentável.
A América Latina, com sua diversidade cultural e religiosa, oferece um terreno fértil para a construção de um ecumenismo que promova a eco-justiça e enfrente a emergência climática. As reflexões e propostas apresentadas durante o curso destacam a importância de uma teologia que seja prática, inclusiva e comprometida com a justiça ambiental. É um chamado urgente para que todos nós, independentemente de nossa fé ou tradição, nos unamos em prol de um futuro mais justo e sustentável para todos os seres vivos.
Além das partilhas, conhecimentos e aprendizados durante os 15 dias de curso no alojamento do CESEEP, os participantes ainda realizaram atividades extra núcleo, como visitas práticas à Escola de Agroecologia de Parelheiros, Aldeia Multiétnica – núcleo Pankararu, Museu das Culturas Indígenas, Catedral Anglicana de São Paulo, Catedral Ortodoxa de Antioquia, que contaram com momentos de diálogo com os respectivos líderes locais. O curso Latino-Americano de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso esteve sob coordenação de Angelica Tostes (Ceseep) com assessoria especializada de Maria Maranhão, Loyet Garcia, Suzana Moreira, José Oscar Beozzo, Ivone Gebara, Mercedes Amaya, Marli Brun, Josias Vieira e Priscilla Ribeiro.
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A autora é jornalista, ecoteóloga feminista em formação, artista no projeto Reflorestamente, que tem o objetivo de reconectar os seres humanos com a Mãe Terra. Cursista do Curso Latino-Americano de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso 2024.