Evangelho das coisas miúdas e o avesso

Por Nancy Cardoso Pereira-

Reflexões e surpresas sobre Mateus 25 Os Evangelhos gostam de tamanhos e intensidades. Extremados e exagerados, os Evangelhos falam da experiência humana, da vida, dos conflitos como últimos e primeiros, grandes e pequenos, muitos e poucos, fortes e fracos, famintos e fartos, em cima e embaixo, dentro e fora.

Os textos estão plenos de alterações, oscilações entre isso e aquilo, contrários, distinções: tudo em movimento, a vida transita entre relações, poderes e hierarquias.

Mais do que um jogo literário de inversões os conflitos e contrários são parte vital dos conteúdos e motivos da boa nova. A viúva oferta duas moedas pequenas e Jesus vai dizer que ela ofertou mais do que todos os outros ofertantes, mais do que os ricos que ofertavam grandes quantias. Pequenas moedas valem mais que grandes quantias (Marcos 12). Um menino pequeno diante de uma grande multidão em João 6: o menino tem alguns pães e pequenos peixinhos. A oferta pequena diante da grande fome. Todos comem e sobra (João 6). Um pastor deixa 99 ovelhas: muitas. E vai buscar a que falta: uma!(Lucas 15)

Um punhado de fermento para três medidas de farinha… leveda toda a massa (Mateus 13) A semente de mostarda – a menor de todas as sementes! – e, crescida se faz árvore, de modo que as aves do céu vêm aninhar-se nos seus ramos (Mateus 13). … primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros (Mateus 19; Marcos 10; Lucas 13) … e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo (Mateus 20) e o maior dentre vós será vosso servo (Mateus 23) Se alguém quer ser o primeiro, será o último e servo de todos (Marcos 9). Quem é, porventura, o maior no reino dos céus? E Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles… quem não for como criança não entra no reino dos céus (Mateus 18).

Discípulos e crianças? Deixai vir a mim os pequeninos porque delas é o reino dos céus (Mateus 19). Os camponeses assalariados, uns trabalham desde a manhã, outros desde o meio do dia e outros desde o fim da tarde: Chama os trabalhadores e paga-lhes a todos o mesmo salário, começando pelos últimos, indo até aos primeiros… quero dar aos últimos tanto quanto aos primeiros (Mateus 20).

Assim os Evangelhos e em especial as parábolas: são imagens rápidas de um mundo familiar, conhecido, tudo é tão simples e claro[1], ao ponto de o ouvinte não poder dar outra resposta senão: sim! de fato é assim! no entanto as parábolas levantam um difícil problema…” identificar dentro das relações conhecidas os critérios do reino de Deus. São sim imagens de um mundo conhecido mas que precisam ser estranhadas, um mundo conhecido com relações conhecidas que precisam ser avaliadas e interpretadas.

Misturado nas coisas do mundo o Evangelho exige reflexão e atitude. As imagens familiares são invadidas por relações de contrários e concluídas com propostas de inversão. Inesperadas. Radicais. Já na apresentação do Evangelho de Lucas (1, 46 a 53), Maria canta a novidade inesperada e radical que confirma a presença salvadora de Deus que inverte os poderes: Então, disse Maria: A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva. … dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos. Estas inversões são ao mesmo tempo estrutura literária e mensagem.

Mais do que conteúdos, as inversões são motivos vitais da boa-nova que se confirmam na oração de Jesus (Mateus 11,25): Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Ocultar aos sábios. Revelar aos pequeninos. Graças à Deus! Com este “ponto de vista” é que devemos nos aproximar do texto de Mateus 25.

Nas palavras de Leonardo Boff: “Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Mudando-se de ponto, muda-se também a vista que este ponto possibilita. Existem distintos lugares sociais e cada lugar social permite (e também interdita) distintas visões da realidade. Estas diferenças permitem discursos diferentes, com interesses também diversos”.[2] Podemos desenvolver nosso testemunho a partir do centro ou da margem, propõe Leonardo Boff: o centro nos oferece uma leitura da realidade, da vida da igreja e do mundo em hierarquias, de cima para baixo, reforçando as estruturas da ordem, da disciplina, da harmonia, do consentimento e da integração como poder centralizado.

Nada mais estranho ao evangelho de Jesus que insiste em se colocar nas margens. Nas margens o “olhar fica mais puro para o essencial”: “A Margem é o lugar onde a vida é severina/sofrida e onde o sistema econômico, social e político em que vivemos põe à mostra toda sua iniquidade, deteriorando todas as formas de vida. A partir da Margem não é difícil ver, como viu Puebla, que o capitalismo é ´um sistema de pecado´, anti-humano e praticamente ateu (n.51, 403)”.[3]

Agora podemos nos aproximar do texto de Mateus 25 e escutar o desafio do Evangelho que exige de nós que façamos a experiência dos pequeninos da Margem que só pedem uma coisa: ser gente. “E esse pedido nos julgará a todos”. O texto de Mateus 25 junta dois imaginários: o julgamento e o trabalho. O cenário magnífico do grande julgamento com a vinda do Filho do Homem em toda sua majestade assentado no trono da sua glória, na presença dos anjos e de todas as nações (vv. 31 e 32) é aproximado das tarefas do trabalhador, do pastor de pequenos animais. O trabalhador apascenta suas ovelhas e cabras misturadas, durante todo o dia ficam juntas e somente no fim da tarde é que acontece o trabalho de separar ovelhas de cabras. Dizem os estudiosos dos costumes Palestinos que as cabras são levadas à noite para um ambiente quente, como uma caverna enquanto que as ovelhas preferem continuar ao ar livre, no ar fresco da noite. Com esta justaposição de imagens a parábola já apresenta sua primeira surpresa: a imagem fantástica e maravilhosa do trono glorioso deixa lugar para os afazeres e lidas do mundo do trabalho. Não é um deslocamento qualquer… é a partir desse lugar que o julgamento quer ser feito.

A primeira inversão já começou e é radical: o lugar de avaliar a história e as relações é o mundo dos trabalhadores, daqueles que se relacionam com o mundo e seus seres na forma do trabalho. Vivem com o mundo e no mundo criando as condições de sua sobrevivência. O trono, os anjos, a majestade e a glória são substituídas radicalmente pelo esforço, o cuidado, o aprendizado e a sabedoria do mundo do trabalhador que vive em relação com o mundo e seus seres. Este é o lugar de julgar, avaliar, separar… identificar valores e critérios. Ovelhas pra lá… cabras pra cá. O “Rei”-pastor convida: bem-aventurados vocês porque o Reino de Deus foi sempre de vocês! Quem? Por que? Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. (vv. 35 e 36)

A segunda inversão aprofunda a radicalidade do texto: o Rei agora é o faminto, o sedento, o imigrante, o despossuído, o doente, o prisioneiro. Mais afastado ainda do cenário glorioso, Jesus fala dele mesmo a partir da margem da experiência humana.

Todas estas experiências denunciam relações ruins de poderes ruins. Comer – por exemplo – é necessidade vital que compartilhamos entre todos os seres. A comida revela uma maneira de estar no mundo, de estabelecer trocas com o território habitado, organizar o trabalho. Comer é fazer cultura como permanência, capacidade de adaptação e criatividade. A fome é uma tragédia porque golpeia a capacidade de sobrevivência dos indivíduos e do grupo social, mas também porque rompe com a capacidade simbólica de reprodução e de representação do acesso aos fatores vitais de vida e de pertença ao corpo do mundo. A fome é uma tragédia porque denuncia uma separação entre os seres e o corpo do mundo.

Não são razões naturais ou necessárias: são relações ruins de poder, de propriedade, de posse, de violência que impedem que homens e mulheres organizem sua vida num território, organizem seu trabalho de modo a satisfazer suas necessidades de continuar vivendo. Pode ser a água feito mercadoria e controlada por poucos a serviço do lucro… a fome e a sede que geram a doença de tantos, que expulsam os povos de suas terras e leva a migração, às situações de conflito, vulnerabilidade e conflito social. Entre eles está Jesus: identificado com os faminto do mundo, os sem terra, os sem água, os migrantes, os doentes, os vulneráveis e os prisioneiros. Jesus na margem.

E o critério de participação no Reino de Deus é este: de enxergar a margem, de entender seu metabolismo, de identificar suas violências e de interferir na forma da socialização do pão, da água, da hospedagem, da compaixão, do cuidado e da defesa. A terceira surpresa se avizinha quando “os bem aventurados”, os justos se surpreendem e dizem: mas quando é que acolhemos a Jesus na margem da vida, na margem do mundo? Fizeram sem saber que faziam… fizeram para além da ação da igreja, ou do motivo religioso, fizeram porque estranham o mundo e suas relações de pecado, fizeram porque acreditam num outro mundo possível e sabem que este novo está oculto aos grandes e revelados aos pequeninos. Aqueles que não entendem, não sabem, não se importam e não se movem pela solidariedade e por vivências e presença junto aos pobre o Evangelho é claro e direto: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos; Porque tive fome, e näo me destes de comer; tive sede, e näo me destes de beber; Sendo estrangeiro, näo me recolhestes; estando nu, näo me vestistes; e enfermo, e na prisäo, näo me visitastes.(vv.41 a 43) Malditos… está aí o estrangeiro, o migrante, com fome, com sede sem dignidade de vida no meio da sua cidade, ou preso na fronteira com frio, doente e com medo e você não deu, e você não foi, e você não acolheu e você não assumiu a nudez e a dor do outro.

Você preferiu o diabo e seus anjos… que assaltam territórios e culturas em nome do lucro gerando miséria e fome, guerras e sofrimento. Apartai-vos! Longe de mim! – diz Jesus. Vocês não entendem… é ali que está Jesus, é ali que toda oração e toda fé fazem sentido.. Ou não! Mas os famintos, os sedentos, os migrantes, os vulneráveis, os criminalizados não podem ser entendidos aqui como sujeitos passivos que esperam uma ação de caridade. Os pequeninos são as maiorias pobres que denunciam com suas vidas a violência dos impérios que devoram terra, trabalho e vida.

Organizados na luta por outro mundo possível os pequeninos não aceitam a paz e o silêncio das multidões, nem a caridade hipócrita das igrejas e agências de igrejas. Os pequeninos se organizam e resistem em situações dramáticas contra o diabo do Kapital e seus anjos (empresas, bancos, mídias…). O que o Evangelho pede de nós é a solidariedade extrema e intensa, de compartilhar possibilidades e recursos para que os pequeninos não sejam exterminados em sua luta pela vida. Nossa luta pela vida. Porque enquanto houver um faminto… todos/as nós somos famintos! Enquanto houver um migrante sendo perseguido e com medo e com frio e preso de modo ilegal todos/as nós somos imigrantes… bem-vindos, na participação do reino de Deus.

Os pequeninos são os protagonistas do Evangelho. Eles são a boa-nova de salvação. Alguém em nome da ortodoxia poderia dizer: não! O centro do Evangelho e de nossa fé é Jesus. Ai… maldito! Longe de mim! Não há outro critério e outro lugar de viver a fé em Jesus. Tudo que fizerem aos pequeninos… ali está Jesus.

Pero dadme, uma piedra em que sentarme, pero dadme, por favor, un pedazo de pan em que sentarme, pero dadme em español algo, em fin, de beber, de comer, de vivir, de reposarse, y después me iré. La reuda del habriento

César Vallejo

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