O Distritão impacta nossas vidas?

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Por Romi Bencke-CONIC/ALC-

A recente decisão do Congresso Nacional de rejeitar a denúncia contra o presidente Michel Temer, além de não levar a sério as denúncias e as provas factíveis que apontam para práticas de corrupção, reforçam os caminhos para as várias reformas colocadas no horizonte político brasileiro.

Uma dessas reformas é a reforma política, amplamente debatida, pelo menos a dez anos, pela sociedade civil organizada. Igrejas, organizações não governamentais, movimentos sociais têm discutido e proposto mecanismos para a superação de velhas práticas patrimonialistas e clientelistas tão características da nossa política. Um dos resultados concretos desse trabalho foi o fim do financiamento empresarial para campanhas eleitorais.

Agora muitos parlamentares têm pressa em agilizar esta Reforma. Para eles, ela tem sido tão prioritária quanto a Reforma da Previdência. É claro que quando existe pressa há sempre uma intenção nem sempre transparente. No caso da Reforma Política são as eleições de 2018, caso ocorram.

Se poderia dizer que está tudo bem que o parlamento discuta a reforma política. No entanto, o problema é a quase ausente vontade de ouvir a sociedade civil e de desconsiderar o que tem sido elaborado pelo conjunto das organizações sociais sobre esta agenda.

Um dos pontos problemáticos da reforma política é um sistema eleitoral que tem sido chamado de “distritão”.

Nesse modelo, serão eleitas as pessoas mais votadas para os parlamentos, independente da votação que o partido teve. Este sistema reforça o personalismo na política e retira todo o caráter coletivo que a política deve ter. É fácil de entender que esta proposta não irá superar o clientelismo.

Aparentemente poderíamos pensar que isso não tem muito a ver com a vida do dia-a-dia. No entanto, se analisarmos com atenção a proposta, é possível perceber que esse modelo irá garantir a continuidade da cultura baseada no abuso de poder político e econômico. Isso significa que esse modelo irá garantir que as velhas oligarquias políticas e econômicas reinem soberanas.

Há muito se critica no Brasil a compra de votos. Um modelo como o “distritão” garantirá que essa prática continue valendo. Este é um modelo, portanto, que fragiliza a cidadania e faz da política única e exclusivamente um caminho para manter as velhas elites no poder.

Novamente pode se fazer a pergunta, de como este sistema pode impactar diretamente nas nossas vidas. Talvez o argumento da permanência das velhas elites no poder seja frágil, afinal, já nos acostumamos com as elites no poder. Com isso, não nos apropriamos desse tema. Estamos errados em pensar assim, porque a Reforma Política, impacta diretamente em nossas vidas.

Desde o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, uma das questões sobre as quais mais se tem debatido é a democracia. As manifestações contra o golpe, as vigílias inter-religiosas pela democracia tinham como elemento comum o reconhecimento da diversidade cultural, religiosa e de gênero.

E por que reivindicar o direito à diversidade? Por que nosso país é um país plural e a democracia brasileira precisa expressar essa pluralidade. Ora, se olharmos para o Congresso Nacional, veremos que ele não representa a pluralidade do nosso país.

A grande maioria dos parlamentares são homens, alinhados com os interesses de grandes corporações do agronegócio e do mercado financeiro. Eles também são brancos e a grande maioria é contrária às políticas públicas que poderiam responder à divida histórica que o país tem com os descendentes de escravos. Não temos parlamentares representando os povos indígenas, por isso, não surpreende os ataques sistemáticos do Congresso Nacional contra os direitos dessas populações. Temos somente uma pessoa que representa a população LGBTT. E as mulheres são representadas por um número pequeno de deputadas e senadoras engajadas com as pautas dos movimentos de mulheres. O Congresso, portanto, não representa a população brasileira.

Além disso tudo, há outra questão muito séria, que diz respeito à religião. A constituição brasileira estabelece a separação entre religião e estado. Essa separação não inibe a cooperação entre estado e religião, sempre que a cooperação seja voltada para o interesse público. Porém, essa cláusula de nossa Constituição tem sido gradativamente desconsiderada. Cada vez mais temos representações religiosas cristãs no Congresso Nacional. Poderíamos perguntar: qual é o problema disso? Um parlamentar não pode ter religião? Sim, é claro que pode. No entanto, o que tem acontecido no Brasil é diferente. Aqui, os parlamentares religiosos atuam a partir das doutrinas, dogmas e valores da sua tradição de fé. Essa prática é incoerente com a Constituição. Quando uma pessoa assume uma função pública ela precisa atuar em favor do conjunto da sociedade. O que rege os espaços de política representativa é a Constituição Federal e não preceitos dessa ou daquela religião.

A presença religiosa no Congresso Nacional tem reforçado agendas que são contrárias ao meio-ambiente, contrárias às demarcações de terras indígenas e quilombolas, desconsideram a melhoria das políticas públicas para as mulheres e têm se posicionado contrários à diversidade religiosa brasileira.

As posturas quase nada abertas para o diálogo do parlamento também tem se refletindo na sociedade. Basta ver a perseguição sofrida pelas pessoas de tradições africanas, indígenas, muçulmanas, judaicas. Em muitos municípios tramitam, por exemplo, leis que querem proibir o abate de animais nas celebrações de matriz africana. Em outros, impedem que crianças indígenas frequentem as escolas com suas pinturas e tem surgido a intolerância e perseguição a muçulmanos com base na lei anti-terrorismo. Apesar disso, estas tantas tradições de fé não estão representadas no Congresso Nacional. Não há quem fale por elas.

Poder-se-ia dizer que elas também podem se candidatar e concorrer a cargos. Minha resposta seria não. No ambiente de representação política as pessoas precisam orientar-se com base em valores republicanos e democráticos, pois elas devem trabalhar e atuar olhando o conjunto da sociedade.

Por fim, essa simbiose entre religião e política, impacta diretamente na vida das mulheres. Não é raro ver parlamentares desrespeitando parlamentares mulheres. Mas, são estes parlamentares que decidem sobre leis relacionadas à vida das mulheres. Nosso país é patriarcal. Para o patriarcalismo não cabe à mulher a autonomia. Orientados por valores religiosos, parlamentares propõem projetos de lei que negam um conjunto de direitos para as mulheres.

O baixo percentual de representação de mulheres no Congresso faz com que a força das mulheres para lutar por leis que garantam a igualdade seja desproporcional em relação a dos homens. Um exemplo recente foi a aprovação da reforma trabalhista, que, entre outras coisas, possibilita que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres de grau baixo e médio.

Todas essas questões e muitas outras têm relação direta com o sistema político. Por isso, o “ Distritão” não é um sistema democrático, pois além de encarecer as eleições, ele não garante a igualdade de condições para as pessoas concorrerem. Grupos sociais economicamente mais fragilizados jamais terão chance de concorrer com pessoas das antigas elites ou representantes delas.

Creio que a resposta à pergunta se o “ distritão” impacta nas nossas vidas está respondida. É justamente porque este sistema não favorece a democracia que ele está sendo articulado às escondidas. Como sociedade é importante que nos apropriemos dessa discussão e não aceitemos que algo tão relevante seja definido sem nós. Não cabe ao Congresso decidir as coisas relacionadas às nossas vidas sem ouvir a nossa voz.

Fonte: Inesc
Foto: Reprodução

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