“A igreja é muita coisa!”: neopentecostalismo e pandemia

Por Angelica Tostes, Delana Corazza e Marco Fernandes¹

CONIC-Em entrevista realizada no Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra, que aconteceu em março deste ano, antes da pandemia chegar à América Latina e nos colocar em quarentena, Adriana da Silva, militante do MST do Estado de Goiás e evangélica, disse “A igreja é muita coisa!”.

A fala da Adriana traduz o papel psicossocial que as Igrejas evangélicas têm cumprido cotidianamente em diversos países da América Latina, e com muita força no Brasil, onde os evangélicos já são quase um terço da população. A Igreja é muita coisa, quando não é tudo para um setor da classe trabalhadora abandonada pelo Estado que encontra refúgio nas igrejinhas de garagem espalhadas aos milhares pelas periferias de nossas cidades. São essas igrejinhas que têm dado respostas concretas, subjetivas e objetivas, para as demandas mais profundas da classe trabalhadora. Inúmeros relatos apontam os cultos como força poderosa de terapia popular – e também de acolhimento e cuidado. O acolhimento e o cuidado que todos nós, crentes ou não, buscamos ainda mais desesperadamente em tempos de coronavírus. No entanto, apesar de serem nessas pequenas igrejas que a maioria do nosso povo está, são os grandes templos e seus pastores midiáticos que têm desenhado no imaginário de grande parte da população quem o evangélico é. Nesse sentido, aquilo que aparece de forma hegemônica nos grandes meios de comunicação não dialoga necessariamente com as distintas realidades desse grupo tão heterogêneo.

Antes de pensarmos no fim do mundo que se avizinha, temos que dar um passo atrás e entender o fenômeno do neopentecostalismo na América Latina apoiado no fundamentalismo religioso – aquilo que chamamos de leitura anistórica, acrítica e descontextualizada da Bíblia. Esse fundamentalismo que enxerga o outro como inimigo, como oposição, no qual a única possibilidade de salvação é a conversão.

O avanço das igrejas neopentecostais “coincide” com o avanço do neoliberalismo da década de 90 e podemos compreender esse paralelo tanto pelo papel psicossocial na vida cotidiana dos trabalhadores empobrecidos, quanto como um projeto de poder que enxergava a Teologia da Libertação como uma ameaça significativa às demandas neoliberais – o inimigo a ser aniquilado. Diversas igrejas neopentecostais receberam aportes financeiros e midiáticos de governos estadunidenses para sua consolidação na América Latina como ação concreta contra a Teologia da Libertação. Lideranças estadunidenses precisavam consolidar um novo modelo de ação cultural que destruísse qualquer ameaça à sua hegemonia; em 1980 a CIA realizou na cidade de Santa Fé, Novo México, reuniões para elaborar estratégias de ação dos governos para a manutenção do seu domínio em nosso continente, suas conclusões estão no “Documentos de Santa Fé” que afirmam a necessidade de educar o povo contra as visões transformadoras que estavam em curso. Mas o quê de novo a teologia neopentecostal irá trazer?

É necessário afirmar que a Teologia da Libertação inaugura uma nova visão dentro do cristianismo, em que a felicidade é possível não somente após a morte, no “reino dos céus”, mas também durante a vida na terra. Esse corte teológico radical vê na luta por justiça social e na construção do socialismo, a possibilidade real e concreta de sermos felizes. É com a classe trabalhadora, na construção cotidiana contra o capitalismo, que essa felicidade poderá se edificar. Esse mesmo corte teológico é absorvido pelos neopentecostais que passam a enxergar a possibilidade de felicidade “no mundo”, sem a necessidade de esperar a morte para encontrar o paraíso. A fundamental diferença é que este corte pode ser traduzido do ponto de vista apenas individual. A felicidade existe, é concreta e pode ser construída nesta vida, mas a interpretação no momento histórico vivido que serve para um projeto de poder nos moldes neoliberais é aquele que enxerga no indivíduo o único responsável pela sua vida na terra; sendo assim, a dedicação à igreja e aos valores cristãos, apoiados em uma leitura fundamentalista da Bíblia, e o esforço individual passam a ser determinantes para essa felicidade. Nesse contexto, ser próspero financeiramente, enriquecer, ser saudável e vitorioso na terra é interpretado como uma prova de fé. A visão neopentecostal de felicidade está afinada com o “espírito do tempo” que vê no consumismo a receita para essa felicidade. Essa nova visão – nomeada de Teologia da Prosperidade, ainda que dentro de um mesmo corte teológico, passa a ser fundamental para um projeto de manutenção de desigualdades e privilégios no qual se sonha somente no singular.

Do ponto de vista hegemônico, a possibilidade de poder e enriquecimento dentro das igrejas é, portanto, legitimada por essa “nova” Teologia que segue fomentando ambições políticas e econômicas de muitas lideranças religiosas, afinadas com ideias conservadoras, que enriquecem graças às doações de seus fiéis e aos negócios que puderam abrir com o capital acumulado, adquirindo também algum poder político.

Durante a pandemia, esse fundamentalismo religioso apoiado na Teologia da Prosperidade se esbofeteou com a realidade e diversas contradições dessa leitura da Bíblia se evidenciaram. Vamos aos fatos:

No Brasil foram proibidos os cultos presenciais durante a pandemia. O atual presidente do nosso país, em meio ao desespero que vivemos, tem mostrado de forma descarada para diversos setores da sociedade seu absoluto despreparo para governar – chegando à inacreditável atitude de, em rede nacional, chamar a pandemia de “gripezinha”, “resfriadinho” – afastando importantes aliados, inclusive no campo evangélico – que mesmo não rompendo com o apoio, se pronunciaram a favor da quarentena, realizando apenas cultos virtuais. Boa parte dos pastores midiáticos manteve o bom senso e não aderiu à cruzada negacionista de seu líder. Mesmo assim, alguns insistiram em suas performances falaciosas incentivando os cultos presenciais, gritando que a culpa do vírus era de Satanás e que a fé conteria o vírus. Para esses, o fundamentalismo cristão esbarrou em limites objetivos: o vírus não faz distinção de religião, o risco de contágio é alto e a justiça brasileira, ao proibir os cultos, agiu para evitar uma tragédia ainda maior. Agora, para os que mantiveram o bom senso, se uma vida próspera e saudável é uma prova de fé, se os escritos bíblicos são o que de mais sagrado – mais do que Deus! – os neopentecostais pregaram, como lidar com a contradição de crer na cura pela fé e se manterem isolados em casa? A fé não é, sozinha, capaz de aniquilar o mal?

A fé não imuniza: uma esperança em meio ao caos

É difícil prever a ação do coronavírus na realidade latino-americana, em especial a brasileira, onde não se pode escolher entre ir ou ficar. Em um país onde o acesso ao saneamento básico e água potável ainda é um privilégio, a vulnerabilidade das periferias e favelas se entrelaça com a falta de serviços por parte do Estado. A exclusão compulsória dos direitos à moradia e saneamento torna ainda mais preocupante a pandemia em nosso território.

A necessidade genuína de acolhimento, os absurdos profanados por parte dos líderes religiosos apoiados pela leitura fundamentalista da Bíblia e a falta de respaldo econômico para as vidas marcadas pela informalidade e insegurança desenharam um futuro devastador para nossa classe. No entanto, as contradições evidenciadas nas leituras fundamentalistas contra o vírus trouxeram à tona o limite que essa visão pode chegar. O fim do mundo pode ser outro.

Nesse cenário, a pergunta que nos cabe responder de imediato é: o que fazer?

Não é mais possível ignorar 30% da população brasileira, em especial as mulheres negras e periféricas, tão fortemente presentes nas igrejas evangélicas. Dentro da impensável realidade que estamos vivendo, podemos escolher alguns caminhos para nossas ações assim que o fim do mundo acabar e, ao contrário do que os fundamentalistas pregam, continuarmos vivendo por aqui.

As potencialidades residem nas brechas e fissuras, transgredindo e recriando novas narrativas. Muitas pastoras/es, teólogas/os e militantes religiosas/os têm feito esse trabalho, embora ainda de maneira marginal, recontando a fé a partir de ideais de libertação das opressões. Algumas igrejas têm disputado a narrativa contra o fundamentalismo, compreendendo a espiritualidade e a ciência não como antagônicas. Inclusive, algumas delas, antes mesmo da proibição dos cultos presenciais já colocaram seus templos a serviço das necessidades da população. Portanto, não podemos consolidar a imagem de que todo cristão evangélico é fundamentalista, conservador e alienado, pois fortalecemos um projeto de poder que se utiliza dessas características e perdemos boa parte de nossa classe para este projeto, aniquilando o diálogo. “A igreja é muita coisa”, nos alertou Adriana, e as pessoas que a frequentam também são. É com a classe trabalhadora que encontraremos respostas, é na sua vida cotidiana e nos buracos de equivocadas interpretações da realidade que consolidaremos as ações para a justiça social que tanto almejamos.

As verdades seguem nesse momento se construindo – o Estado se mostra como fundamental para combater a pandemia e os setores privados escancaram suas limitações. Se estamos todos vulneráveis a esse vírus mortal – do ponto de vista econômico e daquilo que cegamente se crê – as mensagens neoliberais e fundamentalistas se tornam gigantes com pés de barro!

Mas um outro fim de mundo não se constrói sem luta.

Coloca-se, portanto, como imprescindível dialogar com a nossa classe, que está imersa nessa realidade, seja como militante, seja como crente, compreendendo o fenômeno em sua miudeza, em sua subjetividade além das questões estruturais que o compõe, para construirmos de forma concreta este outro fim de mundo. Provavelmente, ao fim da pandemia, com o aprofundamento da crise e complicações referentes à saúde mental dos trabalhadores, as igrejas evangélicas sejam mais uma vez o refúgio de nossa classe e haja um aumento de sua procura. Parece-nos fundamental colocar em evidência as contradições entre os discursos falaciosos profanados já há décadas e suas práticas de extermínio a curto, médio e longo prazo e a necessidade real de nosso povo – escancarados como nunca pela pandemia em curso. No entanto, apesar de tudo ficar mais evidente nessa conjuntura, os mecanismos ideológicos dificultam que isso seja apreendido pelos trabalhadores. Levantarmos a bandeira contra a leitura fundamentalista da Bíblia e estarmos com força nas periferias para compormos novos olhares sobre a realidade, nos aparece como um caminho possível e necessário nesse momento. É tarefa do nosso campo popular cumprir uma agenda estratégica de formação e luta que escancare mais ainda as contradições, mas que também proporcione acolhimento e cuidado que tanto necessitamos. Que estejamos prontos, em marcha, para disputarmos cotidianamente as narrativas em curso a fim de construirmos uma sociedade radicalmente solidária, onde os sonhos sejam, mais do que nunca, construídos no plural.


¹Angelica Tostes, Delana Corazza e Marco Fernandes são pesquisadores do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Obs.: o título precisou ser adaptado. O original era: “A igreja é muita coisa!”: neopentecostalismo em tempos de pandemia

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