Para uma busca da Fraternidade: a lição de Francisco

Paulo Mendes Pinto

Desassombrada, ideológica no que define como horizonte de procura, a nova encíclica do Papa Francisco é o texto que todos os Seres Humanos deviam ler nos próximos dias.

É de fraca regularidade a redação de textos que de forma significativa produzam alterações na Humanidade. Francisco (nome papal de um cardeal que decidiu ir à figura fundadora dos Franciscanos buscar significado para um programa de direção da Igreja Católica), que já antes marcara a sua visão para o Mundo através da Laudato Si, oferece-nos agora um novo exercício pleno de profundidade, uma encíclica que nos retira do ruído do momento e nos conduz a um mergulho no essencial.

Num gesto altamente simbólico, no sábado dia 3 de outubro, o Papa Francisco deslocou-se a Assis e assinou aí a encíclica Fratelli Tutti. Retoma, não apenas o fundador dos Franciscanos na sua dimensão de relação com o mundo natural e criado por Deus, parte do sentido da Laudato Si, como a aprofunda no sentido resultante dessa ecologia: o sermos todos Irmãos. À tão repetida declaração do santo de Assis, “Irmã Sol” e “Irmã Lua” [1], o Francisco do séc. XXI retoma o de há oitocentos anos para afirmar todo e qualquer humano como nosso Irmão. E para esta afirmação, o Sumo Pontífice recupera no início do seu novo texto o episódio da visita que o medievo seu homónimo fizera ao Sultão Malik-al-Kamil, em pleno séc. XIII, num tempo de tremendas guerras religiosas; nesta nova encíclica, no ponto 3, o Papa Francisco recorda:

“Na sua vida [de Francisco de Assis], há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. […] Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. […] Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes ‘entre sarracenos e outros infiéis (…), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus’. No contexto de então, era um pedido extraordinário.” [2]https://www.publico.pt/2020/10/04/mundo/noticia/papa-lanca-enciclica-discurso-odio-governos-populistas-1933973/embed?FromApp=1

Mas este texto agora difundido é também um toque à reunião de todos os Homens de Boa vontade, recuperando, sem traumas nem exclusivismos, a máxima Iluminista da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Tal como Tolentino Mendonça nos recorda de forma clara no seu texto desse mesmo dia 3 de outubro na Revista E (revista do Expresso), “E da tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade, as nossas sociedades integraram as duas primeiras, mas deixaram de fora a Fraternidade.” [3]

Com este texto, cheio de referências cristãs e católicas, Francisco consegue o pleno no exercício da quadratura do círculo ao construir uma visão integradora, humanista que vai ao encontro, que se irmana, dos valores da Modernidade e do Iluminismo.

Desassombrado, ideológico no que define como horizonte de procura, este é o texto que todos os Seres Humanos deviam ler nos próximos dias. A sua visão simples e transversal, diríamos que natural, é o Alfa e o Ómega das relações, ou a coragem de ir ao fundamental: a Fraternidade como unificação e como afirmação do amor pelo próximo, pelo vizinho, qualquer que seja a escala dessa vizinhança (no limite, somos todos vizinhos nesse grande condomínio que é o planeta Terra).Se desígnio humanista houvesse no nosso ensino, então, num dia a ser acertado, por exemplo, no dia 16 de novembro, “Dia Internacional da Tolerância”, em todas as turmas, de todos os anos, em escolas públicas e privadas, este texto deveria ser lido e comentado na primeira aula do dia

Juntando simbologias que aqui se unem na já referida dimensão das ideias perfeitas que junta as gentes da Boa Vontade, recordo Patti Smith no seu recente O Ano do Macaco: “Não existe hierarquia. É esse o milagre do triângulo. Não há topo, nem base, nem lados para escolher. Põe de lado os rótulos da Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – e substitui cada um deles por amor. Percebes o que quero dizer? Amor, Amor, Amor. Cada ponta com o mesmo peso, abrangendo a totalidade daquilo a que chamamos a nossa existência espiritual.” [4]

Se desígnio humanista houvesse no nosso ensino, então, num dia a ser acertado, por exemplo, no dia 16 de novembro,”Dia Internacional da Tolerância”, em todas as turmas, de todos os anos, em escolas públicas e privadas, este texto deveria ser lido e comentado na primeira aula do dia. Como não cristão, veria este gesto como um importante contributo para a cidadania.

Não é utopia. É política na mais profunda forma de tentar alterar o mundo. Para Francisco, na sua Teologia simples e profunda, a Fraternidade não é só a base comum que resulta de uma Criação única e una, como é o fim, o desígnio do convívio, do devir da História e das relações humanas, das vizinhanças, a única base que pode ter a justiça. 

A Fraternidade é o princípio e o fim. 

[1] Francisco de Assis, “Cântico das Criaturas
[2] http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html#_ftnref5
[3] Tolentino Mendonça, “Todos Irmãos”, Revista E, Ed. 2501, 3/outubro/2020, p. 98
[4] Patti Smith, O Ano do Macaco, 2020, p. 94

https://www.publico.pt/2020/10/07/opiniao/opiniao/busca-fraternidade-licao-francisco-1934236

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