“Não sabemos onde termina a igreja”: entrevista com Odair Pedroso Mateus

Leopoldo Cervantes-Ortiz

Sem medo de exagerar, nos últimos anos, no meio protestante/evangélico latino-americano, o nome de Odair Pedroso Mateus tornou-se quase um mito. Oriundo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil e com doutorado obtido pela Universidade de Estrasburgo, dirigiu a Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) em seu país nos primeiros anos e posteriormente trabalhou na então Aliança Reformada Mundial no Departamento de Teologia, na qual editou a revista Reformed World. Posteriormente, esteve vinculado ao Instituto Ecumênico Bossey do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), onde se tornou um de seus mais emblemáticos e apaixonados professores, muito apreciado por seus discípulos de vários países. Posteriormente dirigiu a Comissão de Fé e Ordem (ou Constituição), chegando também ao cargo de secretário geral adjunto do CMI (www.oikoumene.org/sites/default/files/2020-08/Mateus_bio_publications.pdf). No final de 2022, concluíram o trabalho nesses espaços, algo que o WCC destacou na época (www.oikoumene.org/news/wcc-staff-hold-farewell-prayer-and-express-deep -obrigado-por-aqueles-seguindo). Amigo de muitos anos, gentilmente aceitou responder este questionário, que com certeza será de grande interesse para os leitores.

(As opiniões do Dr. Mateus não refletem a posição oficial do CMI.)

Depois de vários anos no Bossey Ecumenical Institute, seu trabalho culmina, que perspectivas você tem em seu horizonte vital?

Ensinei em Bossey durante 16 anos e vivi em Bossey durante 13. Foi a realização de um sonho e uma grande experiência de aprendizado que me preparou para dirigir a Comissão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas de 2015 a 2022 e, em anos recentes, servir também como secretário geral adjunto do CMI (2020-2022). Bossey é um espaço único de formação ecumênica em que a pluriculturalidade e a pluriconfessionalidade interagem ao mesmo tempo na vida cotidiana, na vida espiritual e na vida acadêmica. Isso interroga tanto o ato de ensinar quanto a noção de estudos ecumênicos, especialmente no horizonte da decolonialidade. Agora chegou a hora de servir a utopia ecumênica de outras maneiras. Estou em plena transição, escrevendo artigos, prefácios a pedido, dando algumas entrevistas, me preparando para algumas conferências ecumênicas nos próximos meses e continuando pesquisas sobre teologia ecumênica na biblioteca digital de Fé e Ordem.

A presença latino-americana no âmbito ecumênico acompanhou você à seção Fé e Ordem do CMI. Como você vê o trabalho desta comissão no futuro imediato?

Contribuíram muito para Fé e Ordem teólogos latino-americanos como José Míguez Bonino e meu amigo inesquecível Jaci Maraschin.  Escrevi sobre Míguez (com grande reverência…) para um livro publicado na Alemanha há nove anos. Fé e Ordem faz teologia ecumênica pressupondo uma referência normativa tradicional e universal (sem a qual o CMI não poderia existir): a Igreja que confessamos no Credo de Nicéia-Constantinopla de 381 e no que chamamos Credo Apostólico é una ou não é plenamente Igreja. Por outro lado, não há evidência de que os cristianismos globalizados atuais – em que as divisões se transformaram am biodiversidade cristã – queiram se deixar transformar pelo imperativo ecumênico de manifestar visivelmente esse dom da unidade recebido em Cristo. Esse tipo de teologia ecumênica, que pressupõe uma normatividade eclesiológica universal, aparece hoje para muitos como uma nostalgia cristã eurocêntrica e, portanto, tributária do colonialismo. Esses são alguns dos desafios ao trabalho atual e futuro de Fé e Ordem.

Você deixou uma marca duradoura nos alunos do Instituto. Como você avalia seu trabalho teológico à luz desse compromisso que o ocupou por tanto tempo?

Procurei comunicar com paixão a riqueza espiritual, teológica e estética da diversidade cristã e promover com indignação uma reflexão crítica sobre as divisões cristãs e, em particular, sobre esse desastre protestante (que não foi culpa dos reformadores) chamado denominacionalismo. Acho que a igreja a que pertenço passa mais tempo pensando no dia 31 de julho de cada ano, quando a denominação foi criada, do que na festa da Páscoa ou de Pentecostes, única data de fundação da Igreja… Procurei também, no meu ensino, promover uma visão do ecumenismo em que a busca da unidade cristã é inseparável da luta contra os muros que separam pessoas e sociedades como o patriarcalismo, o racismo, a violência contra mulheres e minorias como os povos originários dos quais sou descendente. O Conselho Mundial de Igrejas foi criado, em 1948, por uma cristologia do pós-Holocausto e, por isso mesmo, defendeu, por exemplo, as vítimas da ditadura militar brasileira.  

É por isso que no centro teológico da assembléia mundial de 2022 do Conselho Mundial de Igrejas estava uma referência bíblica diária à compaixão de Jesus de Nazaré pelos marginalizados (Mateus 9:35). É por isso que a semana de oração pela unidade cristã de 2023 foi preparada por pastores afro-americanos de Minneapolis e região, onde o negro George Floyd foi asfixiado e morto por um policial branco.

Que futuro o senhor vê para o movimento ecumênico nestes anos complexos em que, por exemplo, não se vislumbrava a possibilidade de uma guerra entre países irmãos de tradição ortodoxa?

Há mais de oito anos o estado russo, com o apoio do patriarca ortodoxo (que parece ver na ideologia do “russkiy mir” [“mundo russo”], a mão divina julgando um ocidente protestante que ele tem por espiritual e moralmente “decadente”), tenta desestabilizar um país com fronteiras reconhecidas internacionalmente. Tolerar essa agressão —mesmo levando em conta o expansionismo irresponsável da OTAN e a promoção de guerras para alimentar o sistema capitalista mundial— contribui para a idiotice do desmantelamento de estruturas multilaterais de governança global cada vez mais necessárias em tempos em que os problemas que ameaçam o futuro da espécie humana e do planeta são por definição problemas globais.

As igrejas ortodoxas, que historicamente mantêm relações próximas com estados nacionais e às vezes relações perigosas com o nacionalismo, sofrem hoje as consequências da agressão russa (ao país que é berço da ortodoxia russa!) na forma de um aprofundamento da tensão eclesiástica entre Constantinopla e Moscou que se expressa não apenas no cisma ortodoxo na Ucrânia, mas que atinge todo o mundo ortodoxo de tradição calcedoniana. Muitos anos serão necessários para que essa ferida cicatrize. É urgente orar e trabalhar pela reconciliação.

O dever de orar pela reconciliação e de promovê-la começa agora. Em agosto passado, eu estive na Ucrânia com o secretário geral do CMI, preparando a participação de uma delegação ucraniana na assembléia do CMI na Alemanha, na qual estava presente também a delegação oficial da Igreja Orthodoxa Russa. O CMI não hesitou em condenar a invasão da Ucrânia. Mas se recusou, ao mesmo tempo, a suspender a Igreja Ortodoxa Russa (não foi a igreja que invadiu a Ucrânia!), mantendo assim aberta a porta da admoestação mútua que pode levar à reconciliação.

Aliás, não é de hoje que o Conselho Mundial de Igrejas contribui à reconciliação entre igrejas ortodoxas separadas. O diálogo entre as famílias ortodoxas calcedonia e pré-calcedonia começou nos anos sessenta através da mediação da Comissão de Fé e Ordem do CMI. Em tempos de polarizações fáceis, o movimento ecumênico, constantemente preocupado com a diversidade reconciliada, é mais que do que nunca necessário. O caminho da unidade cristã é complexo e visto por muitos com ceticismo, mas os valores e as virtudes que governam o movimento ecumênico são profundamente necessários em nosso tempo.  

O que você acha do desenvolvimento das famílias denominacionais na esfera ecumênica à luz do certo declínio de algumas tradições denominacionais?

Em cristianismos globalizados, as identidades confessionais ou denominacionais estão cada vez mais ameaçadas por uma espécie de indiferença sociológica e cultural gerada pela distância no tempo ou no espaço entre membros das igrejas e o perfil confessional ou denominacional das igrejas a que pertencem. Ao mesmo tempo, as comunhões cristãs mundiais trabalham, remando contra a maré, por maior catolicidade visível ao reunir em nível regional ou mundial as igrejas de uma mesma família confessional e ao promover o diálogo teológico ecumênico sobre o que as separou no passado ou as separa hoje.

As igrejas de tradição protestante sentem pouca necessidade espiritual ou teológica de expressar de modo visível e institucional que, de acordo com o Novo Testamento, a igreja é não somente local, mas também universal. As igrejas luteranas ligadas à Federação Luterana Mundial deram passos importantes nessa direção, que culminaram em Curitiba, Brasil, em 1991, na declaração de comunhão eclesial entre elas. Nos meus últimos anos como secretário do Departamento de Teologia e Ecumenismo da então Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, a atual Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas, promovi a visão da transformação de uma “aliança” de igrejas reformadas em algo com maior densidade eclesial, uma “comunhão” de igrejas reformadas. A AMIR colocou a noção de comunhão em seu nome, mas continua lutando com o desafio de dar ao nome a densidade eclesial que lhe corresponde.

Você considera que o trabalho do CMI continua sendo importante no ambiente de diálogo ecumênico e inter-religioso?

As igrejas que, acomodadas às velhas divisões, se isolam umas das outras e que deixam de se sentir responsáveis umas pelas outras, correm sempre o risco de transformar o cristianismo em um shopping centre denominacional com verdades e estilos de culto produzidos sob medida para os consumidores de religião e, o que é mais perigoso, de ouvir a voz de um outro Senhor, que pode se chamar Trump, Bolsonaro, Putin, Orban… e segui-lo. Vivendo em comunhão conciliar mundial, que é o que o CMI promove, elas se corrigem e se encorajam umas as outras e têm mais chances de ouvir e seguir não a voz de um novo Führer mas a voz do bom pastor.

Que contribuições relevantes podem ser percebidas nos últimos 10 anos de trabalho do CMI?

Nos últimos 10 anos o CMI procurou mostrar às igrejas a importância de caminharem juntas como peregrinas da justiça e da paz no mundo. Nesse marco geral, trabalhou em favor de uma visão comum da Igreja apresentada no livro A Igreja: uma visão comum; promoveu uma visão da missão cristã centrada no discipulado; promoveu a cooperação inter-religiosa em favor das vítimas da pandemia; coordenou o acompanhamento e proteção de populações palestinas constantemente humilhadas em suas terras ancestrais, que vão sendo tomadas pela ocupação israelense; condenou o anti-semitismo; restabeleceu seu programa de luta contra o racismo; promoveu semanalmente e anualmente a oração pelas igrejas e povos de todos os países. Reuniu no ano passado igrejas de todo o mundo em torno do tema “O amor de Cristo move o mundo à reconciliação e à unidade”. Eu poderia encher várias páginas com esta lista.

Você tem alguma publicação futura sobre ecumenismo em mente que continuará seu trabalho editorial antes e durante seu trabalho no CMI?

Espero reunir em um só volume —com o título Short Ecumenical Writings vários textos curtos de tipo jornalístico que publiquei pelo serviço de comunicação do CMI nos últimos quatro anos. Seria uma continuação em inglês de Crepúsculo: Pequenos escritos ecumênicos, publicado em 2008 (https://bossey.academia.edu/OdairPedrosoMateus). Trabalho em uma espécie de mapa de todos os estudos que Fé e Ordem realizou de 1910 a 2022 para facilitar a navegação na biblioteca dessa que foi a mais importante aventura teológica ecumênica do século 20 e que agora está digitalizada (www.oikoumene.org/resources/publications/faith-and-order-papers-digital-edition). Não existe ainda uma história teológica de Fé e Ordem. Tentei um primeiro passo nessa direção num texto que será publicado em versão condensada na Inglaterra talvez neste ano ou no ano que vem. Gostaria de escrever um comentário em português do Credo de Nicéia-Constantinopla, em preparação às comemorações dos 1700 anos do primeiro concílio ecumênico, mas o Jaci Maraschin já fez isso há 35 anos, quando era membro de Fé e Ordem, em O espelho e a transparência, e eu jamais faria melhor…

Pergunta inevitável: o que você acha do recente processo eleitoral em seu país e das reações que ocorreram nas últimas semanas?

Graças à eleição do Presidente Lula da Silva e a ação do poder judiciário brasileiro em defesa da constituição que rege a república democrática, o Brasil escapou por enquanto da influência crescente e nefasta do movimento internacional de nacional populismo conservador que, com base em leitura pessimista do futuro humano-ecológico, promove projetos políticos autoritários e teocráticos em que os governantes, economicamente ultraliberais, governam para os seus eleitores e financiadores, silenciam a oposição, submetem cortes e parlamentos, e ignoram o bem comum ou as ameaças globais às gerações futuras.

Esse movimento, como demonstrou a historiadora protestante Kristin du Mez no livro, recém traduzido em português, Jesus and John Wayne, se alimenta do nacionalismo cristão, de concepções tóxicas da masculinidade e da supremacia branca implícita no slogan: “Make America great again”, isto é, que ela volte a ser “great” [“grande”] depois de oito anos governada por um afro-descendente. A luta de evangélicos conservadores norte-americanos por um estado cristão é em realidade a luta por um estado branco, sem os descendentes dos africanos escravizados, sem hispânicos, sem muçulmanos. É uma luta nostálgica pela superioridade branca e, por isso mesmo, é uma luta racista e, por isso mesmo, herética.

Que conselho você daria para aqueles que iniciam sua jornada em espaços ecumênicos sobre sua conexão com as igrejas e seu trabalho nesses espaços?

As pessoas que se sentem chamadas a trabalhar pela unidade cristã porque creem nas promessas bíblicas da vinda do Reino de justiça e paz e da reconciliação de todas as coisas em Cristo crucificado e ressuscitado devem procurar trabalhar nas igrejas e com as igrejas (com “i” minúsculo) pela manifestação da unidade visível da Igreja com “i” maiúsculo. Mas muitas igrejas evangélicas latino-americanas são hostis à busca da unidade cristã como testemunho da esperança no Reino que vem. Essa hostilidade é compreensível dada a história do movimento ecumênico na América Latina; o isolamento em que essas igrejas viveram como minorias religiosas; e a ameaça representada pelo crescimento estatístico exponencial do neopentecostalismo.

Essa hostilidade pede diálogo teológico sobre as verdades fundamentais da tradição cristã recebidas do Novo Testamento e da tradição apostólica e pede esclarecimento sobre o movimento ecumênico contemporâneo como ato de fidelidade aos ensinos da igreja antiga que são mais importantes que as identidades denominacionais.

Mas é claro que há muito trabalho ecumênico que pode acontecer fora dos limites institucionais das igrejas. O engajamento jovem contra o iminente desastre climático; a luta contra a pandemia do feminicídio, a defesa da dignidade e direitos de minorias odiadas; a resistência ativa à violência social são combates que, sem ser formalmente cristãos, exprimem valores e convicções compartilhados por diferentes tradições cristãs. Essas lutas são por tanto ecumênicas. Quando confessamos com o Credo de Nicéia que cremos em Deus Pai Todo Poderoso, “criador dos céus e da terra”, fazemos uma confissão que tem hoje implicações para a maneira como vivemos a fé cristã diante da iminência do desastre climático.

Quem está trabalhando ecumenicamente fora dos limites institucionais das igrejas, deve se lembrar em espírito de oração, diaconia e humildade que nós sabemos onde a Igreja começa, mas não sabemos onde ela termina porque, segundo o ensino antigo, ela é obra do Espírito antes e acima de ser controlada pelos seus líderes.

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