Filmes brasileiros trazem diversidade ao debate sobre aborto

Enquanto Hollywood ainda conta com maioria de personagens brancas e diretores homens cis, cinema sobre direitos reprodutivos tem mudado na última década.

Uma jogadora de vôlei de 17 anos de idade, negra, periférica, com um futuro promissor no esporte, está prestes a ganhar uma bolsa de estudos no exterior, mas às vésperas da final do campeonato e da mudança de vida, descobre que está grávida. Uma mulher branca, de classe média, cineasta renomada, vive as expectativas da primeira gravidez quando, durante a pandemia, descobre que está gerando um feto que não tem chance de sobreviver.

Ficção, realidade, faixa etária, cor e idade são aspectos diferentes entre as duas mulheres, mas as levam para uma luta em comum: a busca por um aborto seguro, retratado em filmes nacionais premiados recentemente em festivais e que já começam a circular entre o público.

Dirigido por Lillah Halla, Levante estreou na última quinta-feira (22) nos cinemas brasileiros. A ficção, estrelada pela atriz Domênica Dias, já conquistou diversos prêmios, entre eles o da Crítica Internacional, como melhor obra das seções paralelas do Festival de Cannes, e o Troféu Redentor de melhor montagem e melhor direção no Festival do Rio.

Já Incompatível com a Vida é um documentário que se baseia na experiência pessoal da diretora Eliza Capai. Grávida durante a pandemia da Covid-19, ela resolve documentar a gestação, mas acaba descobrindo a condição que a leva a buscar um aborto. O filme acaba se tornando um registro dessa jornada, enquanto apresenta histórias de mulheres que receberam o mesmo diagnóstico durante a gravidez.

O filme de Eliza esteve qualificado para ser indicado ao Oscar e também foi reconhecido com o prêmio de melhor documentário pela Academia Paulista de Críticos de Arte e o de Melhor Filme e Melhor Montagem na última edição do Festival É Tudo Verdade.

Produções nacionais, encabeçadas por mulheres e pessoas LGBTQIA+, ajudam a trazer  um olhar renovado sobre o aborto – um resultado de décadas de luta por um cinema mais diversificado, sobretudo para cobrir temas sensíveis para o mesmo público.

Homens cis falam de aborto

No circuito da terceira maior e ainda considerada a mais influente indústria cinematográfica do mundo, Hollywood, o aborto é um tema que está presente desde os primórdios da própria história do cinema, mas que foi narrado majoritariamente por homens cis até a segunda década do século XXI.

É o que indica o banco de dados sobre a representação do aborto na TV e no cinema hollywoodiano, Abortion on screen, do grupo Advancing New Standards in Reproductive Health (ANSIRH), da Universidade da Califórnia. Desde 2016, a pesquisa, encabeçada por Gretchen Sisson, Steph Herold e Katrina Kimport, busca entender de que forma as atrações televisivas americanas retratam o aborto, assim como as obras que são produzidas ou chegam a Hollywood.

Em um total de 214 filmes catalogados, apenas 31 são totalmente dirigidos por mulheres cis, enquanto cinco são codirigidos com homens cis e um filme é dirigido por uma pessoa não binária. A maior parte dessas obras em que homens cis não falam sozinhos sobre aborto – 62% – foi lançada entre 2010 e 2024.

Ainda assim, nem sempre a direção de uma mulher cis teve como resultado um olhar mais cuidadoso ou positivo sobre a prática do aborto. No filme mais antigo do banco, Where Are My Children, a direção é de Phillips Smalley em parceria com Louis Weber, uma das pioneiras na profissão e famosa por ter realizado o primeiro nu frontal feminino.

Apesar da ousadia, para a época, de abordar o tema do aborto e o uso de contraceptivos – Weber também dirigiu outro filme citado na plataforma, The Hand That Rocks the Cradle -, Where are my children, hoje, é considerado eugenista pelo olhar implícito sobre o impacto da interrupção da gravidez na taxa de natalidade.

Ainda que filmes em língua inglesa e norte-americanos sejam maioria, o grupo de pesquisa não deixa de monitorar produções de língua não-inglesa e de outros países que também circulam entre as distribuidoras hollywoodianas.

Exemplos disso são o francês O Acontecimento, vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza, em 2021, e Lingu – Laços Sagrados, do Chade. O mesmo vale para seriados que são de outros países, mas foram produzidos ou distribuídos por plataformas de streaming disponíveis nos EUA, como a série Bom dia Verônica, produzida no Brasil e disponível na Netflix.

Nas produções coletadas, o aborto não precisa ser o principal fio norteador das histórias, mas de alguma forma resulta em um grande impacto para as trajetórias das personagens que o realizam.

Em 18% dos filmes, as personagens morrem a partir do procedimento, independentemente da sua legalidade no contexto em que a história se passa, enquanto 57% dos filmes não mostram qualquer tipo de consequência do aborto para a saúde física e mental das personagens. Nenhum deles traz uma representação positiva sobre o aborto para a saúde mental das personagens ou para sua trajetória posterior.

A maior diversidade de gênero entre diretores do circuito de Hollywood foi acompanhada por uma mudança de contextos políticos. São os anos da Onda Verde pela descriminalização do aborto na América Latina, ao mesmo tempo em que mulheres norte-americanas passaram a enfrentar uma guinada conservadora contra o aborto, consolidada em 2022 com a revogação pela Suprema Corte dos EUA da decisão do caso Roe versus Wade, de 1973, que concedia o direito ao aborto durante o período gestacional em que o feto não pudesse sobreviver fora do útero.

Ao resgatar o processo de produção de Levante, Lillah Halla conta que o roteiro começou a ser costurado nas fronteiras do Brasil com o Uruguai, há oito anos, ao lado de Maria Elena Morán.

O país vizinho havia acabado de legalizar o aborto, o que levou a dupla a conhecer de que forma o sistema de saúde estava se preparando e quais eram as possibilidades de acesso à interrupção voluntária da gestação para pessoas de outros países.

Subcoordenadora de pesquisas do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), Marcia Rangel Candido destaca a importância de medidas inclusivas que, para ela, são fundamentais para garantir um cinema mais acolhedor para temas como o aborto e a violência de gênero, que movimentam o debate na sociedade, mas ainda encontram resistências diversas para serem lidos como temas de políticas públicas.

“A partir do momento que os atores se pluralizam, é possível surgir novas ideias, novas perspectivas. Eu acho que isso é particularmente relevante quando a gente está tratando de um tema que é extremamente delicado para as pessoas diretamente envolvidas, mas também é conflituoso e é uma questão de saúde pública. Para além de ser um assunto que afeta diretamente os corpos de algumas pessoas, é um assunto político de extrema urgência.”, opina.

Uma diversidade não só de mulheres, como Lillah destaca, mas também de pessoas com útero e outras identidades de gênero – Levante tem um elenco LGBTQIA+ marcado pela pluralidade.

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Não à toa, Sofia é uma adolescente bissexual. Esse tema [aborto] tem que sair das pautas heteropatriarcais, porque ele não pertence só esse a lugar”

Rangel Candido acredita que, mais do que a mudança do perfil de diretores e roteiristas, há uma circulação maior do que já vem sendo feito. A pesquisadora destaca a importância da visibilidade de festivais e de outros espaços que garantem que um filme possa ser assistido.

Uma forma de estratégia que, avalia, é cada vez mais apropriada por pessoas não-brancas e LGBTQIA+, a partir de uma série de incentivos para que consigam cotas que os levam a ter condições de pensar em todas as etapas da produção de um filme.

“Acredito que vai ter um impacto para que mulheres negras, homens negros, mulheres brancas, indígenas, consigam acessar melhores condições para produzir seus filmes e, consequentemente, ter a possibilidade de divulgá-los, já que às vezes você consegue produzir um filme com baixo custo, mas para fazer com que ele alcance o grande público é um desafio maior”, reflete.

Já em Incompatível com a vida, Eliza Capai buscou trazer histórias que também atravessassem a fronteira do imaginário conservador.

“Foi uma opção buscar mulheres que desejavam ou desejam a maternidade, desejavam aqueles filhos, e tiveram fetos incompatíveis com a vida. Foi uma forma de debater o aborto com uma perspectiva que talvez seja mais aceita nesse país, o da mulher de família”

Para Eliza, a oportunidade de contar sua história foi uma forma de aproximar um público – no qual ela também se inclui – sub-representado em um meio audiovisual que, ela lembra, ainda é marcado por uma hegemonia branca e masculina.

O filme é uma tentativa de que as mulheres tenham acesso ao que acontece para, caso passem por isso, tenham alguma referência. As referências, os espelhos, ajudam a nos sentir menos sozinhas e a saber o que fazer diante daquela situação”

No entanto, Eliza destaca que, apesar de ter conseguido uma diversidade regional para o filme, teve mais dificuldade para encontrar histórias de mulheres negras que passaram pela mesma situação. Foi quando se viu diante de algo que, para ela, mostra uma “faceta cruel do racismo”: mulheres negras têm mais dificuldade de acesso ao pré-natal, acompanhamento que poderia identificar se um feto tem uma condição incompatível com a vida.

Em 174 dos 214 filmes catalogados pela Abortion on Screen, as personagens que abortam são mulheres brancas, enquanto 25 obras mostram histórias de mulheres não-brancas (negras, asiáticas ou latinas) e em 15 não há informação sobre a raça das personagens.

Fuente: https://www.generonumero.media/

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