Wanda Deifelt: um olhar feminino sobre a Reforma Protestante

Wanda Deifelt (Foto: Revista Missões)

Wanda Deifelt (Foto: Revista Missões)

Do ponto de vista da Reforma Protestante as atividades de um sacerdote ordenado seriam superiores às de uma mãe? Não. Se olharmos para o tema a partir da perspectiva da vocação, a resposta continua sendo um sonoro e uníssono não. Entretanto, isso não significa que Lutero era um homem à frente de seu tempo, livre de quaisquer preconceitos, era antes seu filho dileto. “Na ordem natural, o papel da mulher corresponde à sua função materna — e nisto Lutero ecoa a visão medieval, onde a mulher era subordinada ao homem. Ainda assim, Lutero não propõe uma submissão cega e unilateral das mulheres, mesmo que muitas vezes se refira a elas em linguagem crassa”, pondera a professora e pesquisadora Wanda Deifelt, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ao pensar os ecos da Reforma Protestante na atualidade, Wanda analisa criticamente o protestantismo ao mesmo tempo que leva em conta o período histórico em que o movimento ocorre. “Pode-se dizer que a ideia do ministério feminino encontrou resistências em teólogos como Lutero e Calvino muito mais a partir dos seus limites históricos do que de suas convicções teológicas”, sustenta. Todavia, ao mirar o futuro a professora o vê positivamente. “Continuamos trabalhando em direção a um futuro que conduza a uma comunhão ainda maior, onde possamos entender hospitalidade eucarística uns aos outros, reconhecer a variedade de dons e ministérios existentes em nossas igrejas e afirmar que nossas comunhões eclesiais são igualmente Corpo de Cristo, apesar das diferenças teológicas que continuam nos separando”, completa.

Wanda Deifelt é brasileira, luterana, possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST, de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Tem mestrado pelo Garrett-Evangelical Theological Seminary e doutorado pela Northwestern Univesity, ambas na cidade de Evanston, estado de Illinois, EUA. Atua como professora e coordenadora do departamento de Religião da Luther College, na cidade de Decorah, estado de Iowa, EUA. Trabalha com teologias contextuais, em especial teologia feminista. Entre os temas que aborda estão Lutero e luteranismo, criação, cristologia, direitos humanos e sexualidade. É autora de, entre outras obras, À flor da pele – Ensaios sobre gênero e corporeidade (São Leopoldo: Sinodal, EST, CEBI, 2004).

Confira a entrevista.

HU On-Line O que aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) com Martinho Lutero e com a Reforma Protestante?

Wanda Deifelt – Lutero desafiou muitos ensinamentos e práticas da Igreja Católica medieval ao afirmar que a fé em Cristo é suficiente para a salvação. Deus nos aceita e nos pronuncia justos não por causa de nossas obras ou méritos, mas através da nossa fé em Jesus Cristo — que nasceu, sofreu, foi crucificado e morreu por nossos pecados. Em seu comentário sobre Gálatas, Lutero resume isto dizendo que salvação e vida eterna não vêm pela lei mas pela graça, não pelas obras que fazemos mas pelo amor de Deus que opera em nós, não por nossa vontade mas por Jesus Cristo.

Acreditar que a salvação pode ser alcançada através dos nossos próprios esforços pode levar tanto à arrogância quanto ao desespero. Lutero vivia na angústia de não saber se ele havia feito tudo o que podia para assegurar o favor de Deus. Ele era tomado pelo temor de não ter cumprido todos os mandamentos, de não ter confessado todos os seus pecados, de não ter feito todas as boas obras que a lei exige, ou de não ter vivido uma vida sem máculas. Como aplacar a ira de Deus? Como encontrar um Deus misericordioso? Este peso de nunca conseguir fazer o suficiente para assegurar o favor de Deus o atormentava a ponto dele muitas vezes chegar a odiar Deus — um Deus juiz e carrasco que pune os pecadores.

A justificação pela fé se tornou um dos principais temas na Reforma Protestante. A partir da leitura das Sagradas Escrituras, Lutero foi inspirado pela teologia paulina de que “o justo viverá pela fé” (Romanos 1:17). A postura da Igreja Católica medieval, de que à fé também boas obras deveriam ser acrescentadas para alcançar a salvação, havia levado a muitos abusos, em particular a venda de indulgências. Lutero compreendeu que somente a fé nos justifica perante Deus, ou seja, que em um sentido forense Deus nos pronuncia justos e justas mesmo que sejamos pecadores e pecadoras. A justiça de Deus, revelada pelo evangelho, é a justiça passiva com que Deus nos justifica pela fé (Deus nos justifica, não somos nós quem nos justificamos).

Esta foi a descoberta de Lutero: O encontro salvífico entre Deus e a humanidade, entre criador e criatura, só é possível através da iniciativa de Deus, chegando a encontrar-nos em nosso mundo quebrado e pecaminoso. Deus vem a nós como um presente, uma dádiva. Nossos esforços não são suficientes para produzir a salvação. Antes, recebemos salvação pela fé em Cristo e através da graça de Deus.

IHU On-Line Qual foi o impacto da Reforma Protestante no que diz respeito à participação das mulheres nas Igrejas Luterana e Católica?

Wanda Deifelt – No século XVI, o espaço ocupado pelas mulheres era bastante restrito: casa, convento, ou prostíbulo. A casa oferecia a manutenção da família, o convento dava oportunidade de educação e o prostíbulo era uma forma de sobrevivência. Lutero foi crítico à vida monástica e entendeu o celibato como contrário à ordem natural ditada por Deus. Também foi severo em relação à prostituição por entender que ela corrompe a integridade pessoal. Para Lutero, a maternidade e o matrimônio eram o lugar natural das mulheres. Em sua visão de vocação, as atividades de um sacerdote ordenado não são superiores às de uma mãe que troca as fraldas de uma criança. Lutero atribui um teor espiritual à procriação, atentando que cabia à mulher, como boa esposa e mãe, também o cuidado das crianças e a educação cristã na família.

Para Lutero, o casamento não é mais considerado um sacramento, mas uma instituição temporal (weltlich) ordenada por Deus, e que deve conter a realidade de pecado. A sexualidade deveria ser vivida dentro do matrimônio. Como imagem de Deus, homem e mulher são iguais, o que se reflete especialmente na ordem da redenção: ambos são justificados e chamados a viver em Cristo. Porém, na ordem natural, o papel da mulher corresponde à sua função materna — e nisto Lutero ecoa a visão medieval, onde a mulher era subordinada ao homem. Ainda assim, Lutero não propõe uma submissão cega e unilateral das mulheres, mesmo que muitas vezes se refira a elas em linguagem crassa. Percebe-se em Lutero um descompasso entre o avanço teológico e a aquiescência à cultura da época.

IHU On-Line – A propósito, na avaliação da senhora, a Reforma foi um evento positivo ou negativo para os cristãos?

Wanda Deifelt – Apesar de darmos crédito a Lutero, é necessário lembrar que ele não foi o primeiro e nem o único reformador. Antes dele, John Wycliffe e Jan Huss haviam ensaiado reformas dentro da igreja, mas foram perseguidos como heréticos. Como movimentos, os cátaros e valdenses inauguraram certas práticas, como a tradução de textos da Bíblia para o vernáculo e o questionamento sobre a autoridade do papa, que encontraram eco na teologia de Lutero. Além disso, Lutero não trabalhou sozinho. Seus colegas da Universidade de Wittenberg (Phillip Melanchton, por exemplo) foram colaboradores neste processo.

Como um todo, a Reforma teve efeitos positivos mas também teve consequências indesejadas. A cisão no corpo de Cristo (a separação entre a igreja católica e as igrejas protestantes) foi uma destas consequências indesejadas. Há que se entender que este não foi o intento inicial do movimento da Reforma. Quando Lutero postou suas 95 teses em Wittenberg, em 1517, ele estava chamando para um debate, no verdadeiro sentido do engajamento acadêmico. Ele queria debater a validade das indulgências, a autoridade do papa em vendê-las e a bagatelização do arrependimento que as indulgências provocam na vida cristã.

 

 

Fonte: IHU On-Line
Foto: Revista Missões

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