‘Queremos preparar digitalmente jovens para que também possam ter uma voz’

ALMA DE WALSCHE

Digital storytelling como ferramenta de empoderamento. Este é o objetivo da ONG belga, Comundos. A organização oferece, mundo afora, cursos de alfabetização midiática para jovens. ‘Ao deixar as pessoas do Sul construírem a própria história, você abre mão do controle.’

Nunca fomos tão dependentes da internet para nossa comunicação e sessões no zoom, plataformas de aprendizagem e o comércio eletrônico. A pandemia acelerou essa transformação digital. Ao mesmo tempo expôs dolorosamente uma lacuna digital. Quase metade da população mundial não possui acesso à rede mundial e especialmente nos países do Sul.

A África Subsaariana está muito atrasada. Segundo dados recentes da UNESCO, que apurou a situação das crianças em idade escolar no contexto da pandemia, 89% dos alunos não têm computador em casa, e 82% dos 11% que têm, não têm acesso à internet. Além disso, 56 milhões de estudantes vivem em regiões que não estão conectadas a uma rede móvel.

Apesar da disponibilidade de internet móvel ter sido ampliada na África nos últimos anos – de acordo com o Banco Mundial, 70% da região tem cobertura de internet – regiões remotas ainda permanecem digitalmente fora do alcance. Nas áreas com internet, a possibilidade de se conectar de fato ainda é muito remota. Apenas 25% dos habitantes usam a internet.

As áreas rurais e as famílias pobres têm a maior desvantagem, devido à falta de computadores, smartphones, eletricidade ou por causa das barreiras linguísticas. Isso tem consequências profundas: aqueles que não estão conectados digitalmente não têm acesso ao conhecimento e à informação e são excluídos da participação e comunicação.

Crie sua própria história

A organização sem fins lucrativos, Comundos, quer mudar esta realidade. Em 2014, começou a ministrar cursos de alfabetização midiática para jovens no Sul. O idealizador da iniciativa, Bart Vetsuypens, morou diversos anos no Brasil, onde trabalhou com telecentros em Recife e Fortaleza.

‘Não ensinamos apenas habilidades técnicas aos jovens. Ensinamos também a ter um olhar crítico sobre a mídia.’

A partir dessa experiência, ele desenvolveu seu próprio modelo para ajudar os jovens a preencher a lacuna digital e incentivá-los a criar suas próprias histórias. ‘Não ensinamos apenas habilidades técnicas aos jovens, mas também como olhar a mídia de forma crítica, como ela é feita e como ela influencia a nossa visão da realidade.’

Por meio de ONGs como Disop (que não existe mais, ed.) e VIA Don Bosco, Vetsuypens se reuniu com escolas agrícolas em aéreas rurais na África e na América Latina. Os cursos foram projetados para educadores que desejavam aprender e multiplicar habilidades básicas nos TIC, além de trabalhar com narrativas. Com a ajuda da linguagem e das imagens, os jovens aprendem a criar, num vídeo de três minutos, histórias inspiradas na sua realidade, nos problemas que os cercam ou na sua perspectiva futura.

Nos últimos anos, Comundos trabalhou com pessoas em Moçambique, Camarões, Benin, Congo, Ruanda, Honduras, Guatemala, Nicarágua e o Brasil. Em 2015, MO acompanhou uma das aulas nos estados brasileiros de Piauí e do Maranhão. Os jovens compartilharam sua visão sobre agricultura sustentável. Eles também expressaram sua preocupação com a crescente insegurança nas cidades brasileiras e as árvores ameaçadas de babaçu, entre outras coisas.

Na Guatemala, as comunidades locais também começaram a contar suas histórias. No clipe a seguir (também neste texto) Levi Estuardo de Léon fala sobre sua estratégia de sobrevivência. Seus pais emigraram para os Estados Unidos; ele não os vê há dez anos. Junto com seus irmãos, ele montou projetos para se sustentarem.

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Acesso a informações (confiáveis)

Segundo o camaronês Emmanuel Sengafor, estar conectado digitalmente é de grande importância para áreas remotas. Ele é o coordenador pedagógico do Proceffa, uma rede formada por cerca de trinta escolas agrícolas rurais em Camarões. Sengafor frequentou um curso da Comundos. Agora, ele ensina a jovens entre 12 e 20 anos sobre alfabetização midiática em uma plataforma na qual dez das trinta escolas estão filiadas.

Da capital dos Camarões, Yaoundé, Sengafor nos conta: ‘Por uma variedade de razões, esta formação é muito útil para nós.’ Ele usa um exemplo para explicar. ‘Na parte de língua inglesa dos Camarões trava-se uma guerra que é também uma guerra de informação. Há alguns anos, circulou uma mensagem de que os separatistas, defendendo a separação dos Camarões da língua inglesa, haviam vencido a batalha. Eles celebrariam a separação no dia 1º de outubro, o dia de comemoração da unificação dos Camarões francófonos e anglófonos’.

‘Quando os agricultores em áreas remotas conseguem se informar sobre valores e a previsão meteorológica, faz realmente uma diferença.’

Sengafor explica que, de acordo com a mensagem, as Nações Unidas enviariam os Capacetes Azuis para vigiar o novo status. ‘As fotos mostravam os Capacetes Azuis chegando. Muitas pessoas acreditaram na mensagem e foram para o local, mas as fotos eram de uma outra operação. Acabou em tumultos violentos, que resultaram até em mortes. Ninguém teve a chance ou o reflexo de verificar se o apelo era real.’

Sengafor dá outro exemplo: ‘O acesso à internet gerou uma grande mudança para os agricultores que vivem em áreas remotas. O acesso à informação é empoderamento. Quando os agricultores em áreas remotas conseguem se informar sobre valores e a previsão meteorológica, faz realmente muita diferença para a formação de preços e o planejamento do trabalho.’

A colaboração entre Comundos e Proceffa começou do zero. Com a ajuda do Close the Gap, uma iniciativa que fornece computadores e laptops usados para fins de inclusão digital, Comundos forneceu um total de 100 laptops: 10 laptops por escola.

Durante a conversa pelo WhatsApp com Sengafor, em Camarões, a conexão falhou regularmente. ‘Outro problema é a qualidade da Internet’, explica Sengafor. ‘Isso mostra a nossa realidade digital, mesmo na capital.’

Das escolas filiadas, cerca de 40% participam ativamente dos cursos. Isto se deve à capilaridade digital de Camarões. Algumas comunidades sequer possuem cobertura telefônica. Na região de língua inglesa, há uma escola em que o fornecimento de energia às vezes é interrompido por seis meses. A Sengafor sonha em equipar as escolas com painéis solares, para que possam ter acesso permanente à energia, mas ainda faltam os meios financeiros.

© Comundos

A Comunicação Conecta

Não menos importantes que as TIC são a linguagem e as habilidades em comunicação. Trata-se de aprender a contar sua própria história em palavras e imagens e desenvolver uma visão.

Sengafor explica que ‘os jovens acham isso muito mais interessante do que as aulas chatas em sala de aula’. Eles procuram fotos que se encaixem na história que querem contar, brincam com frases e aprendem a se expressar. Eles não pensam apenas em sua própria realidade, mas também em temas globais como a migração e as mudanças climáticas.

‘Queremos preparar digitalmente os jovens para que também sejam ouvidos.’

Assim que eles possuem um primeiro rascunho de sua história, eles conversam entre si e aprendem como podem julgar de forma crítica seu contexto de vida. Depois, eles começam a montar essa história. Aprendem como fazer o upload de imagens num computador, a narrar uma história e a inserir música de fundo.

Sengafor: ‘Uma grande vantagem é que o trabalho preparatório pode continuar enquanto a Internet estiver fora do ar; e assim que a Internet estiver conectada novamente, os filmes podem ser postados online.’

© Comundos

Assuntos cotidianos

O conteúdo dos cursos está alinhado com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os jovens do Sul contam histórias sobre educação, saúde, pobreza e moradia – cada vez em contextos muito específicos.

Sengafor: ‘Os ODS são conceitos abstratos que foram estabelecidos por meio de um debate global, que ocorreu principalmente online. Nossas vozes não foram ouvidas. Queremos preparar os nossos jovens para esses debates para que eles também possam ser ouvidos.’

Este vídeo discute o problema do trabalho infantil no leste dos Camarões. Neste vídeo, um dos supervisores pedagógicos fala sobre o problema do abandono escolar em Ngaoundéré, na região de Adamawa. Ele também aborda as consequências devastadoras do abandono escolar na sociedade.

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Sengafor: ‘Contar histórias ajuda a buscar informações ativamente e formar uma opinião. Ao contar histórias uns aos outros, debater os problemas e buscar soluções, queremos que nossos jovens desenvolvam uma mente aberta e se tornem mais tolerantes uns com os outros.’

Os problemas que as comunidades enfrentam não são insignificantes: no noroeste de Camarões há a ameaça do Boko Haram. Lá, a vida das pessoas gira em torno de atender às necessidades humanitárias básicas. Além disso, o casamento infantil e a mutilação genital feminina (MGF), são tabus que devem ser discutidos, acredita Sengafor. Storytelling pode lançar luz sobre esse tópico.

Por fim, Sengafor destaca como a conexão digital contribui para a paz: ‘Camarões é um país de grande diversidade. Uma parte é paisagem do Sahel, outra é savana e outra é floresta. Nosso país conta com mais de 250 comunidades com o mesmo número de idiomas locais. Esta diversidade torna ainda mais importante a comunicação, através de todos os meios possíveis. Por meio da comunicação pode-se aprender a entender o outro e traçar um caminho para a paz.

© Comundos

Descolonizando a Internet

Uma coisa é se preocupar em estar conectado. Outra questão preocupante é a gestão dos dados, uma vez conectados.

Quem controla e gerencia a rede mundial? Esta é a principal questão do Tierra Común na Colômbia, uma rede de jornalistas, militantes, ativistas de direitos humanos e organizações da sociedade civil. Eles entendem a importância da conectividade global e, ao mesmo tempo, estão preocupados com o roubo de dados de forma escusa.

O Tierra Común quer ajudar áreas remotas da Colômbia a ter acesso à conexão digital, se necessário, na falta de internet, expandindo as redes locais. Além disso, Tierra Común também faz parte de um movimento internacional por tecnologia não alinhada, que foi criado para descontruir a dependência de grandes players como Google, Microsoft, Apple, Facebook, entre outros. Este movimento questiona tanto o modelo americano baseado em lucrar, do Vale do Silício, como o modelo chinês de controle centralizado, e quer descolonizar os dados da internet.

‘Não apenas nossas terras e recursos naturais estão sendo colonizados, mas todas as áreas de nossas vidas’, diz Julio Gaitán, diretor do Centro ISUR (Internet e Sociedade da Universidade de Rosario) em Bogotá.

Junto com Comundos, o Tierra Común oferecerá em breve um curso para os professores das comunidades indígenas Wayuu que vivem no nordeste da Colômbia, na península de La Guajira. Milhares de venezuelanos em fuga entram na Colômbia por esta região remota. O diretor Julio Gaitán explica, por meio de WhatsApp para MO*, que as habilidades em TIC e a digital storytelling podem ajudar a conectar venezuelanos e colombianos e chamar a atenção para essa problemática.

Norte e Sul

Contar histórias ajuda também a aproximar o Sul e o Norte. Contar histórias ajudou o município de Evergem a ganhar novas perspectivas durante a pandemia. Com o Conselho Municipal de Cooperação Internacional (GRIS), o município apoia diferentes iniciativas locais na África e na América Latina. São iniciativas privadas feitas por cidadãos belgas que querem apoiar um projeto no Sul, que muitas vezes conheceram pessoalmente.

Quando a pandemia cancelou inúmeras iniciativas, desde festivais a iniciativas de arrecadação de fundos, a comunicação digital ofereceu a oportunidade de uma nova abordagem, com mais conteúdo, mais substantiva. Comundos e o município criaram um projeto para conectar, por meio de narrativas digitais, parceiros do Sul com pessoas de Evergem.

‘No início, as pessoas aqui mostraram alguma resistência’, diz Koen De Baets, funcionário do ‘Norte-Sul’. ‘Muitos têm mais de 65 anos e não se sentem à vontade no mundo digital. Mas também para eles foi uma experiência particularmente rica para o desenvolvimento das suas habilidades técnicas.’

A resposta do Sul foi uma surpresa ainda maior. ‘Ao deixar as pessoas do Sul construírem sua própria história, você abre mão do controle’, explica De Baets. ‘Os papéis se inverteram: os parceiros do Sul se mostraram muito hábeis em fornecer material visual e contar sua história. Em vez de benfeitores, as pessoas de Evergem se tornaram espectadores e testemunhas das histórias contadas pelo Sul. Além disso, os parceiros do Sul explicaram como gostariam de desenvolver seu projeto.’

O projeto foi finalizado com um ‘festival de cinema’, no qual foram exibidos cerca de dez filmes e vários ‘Oscars’ foram entregues. ‘O projeto foi muito intenso, mas muito gratificante e instrutivo para todas as partes’, conclui De Baets.

Mais trocas por meio da narrativa digital

O intercâmbio entre a comunidade flamenga e o Sul não se limita a Evergem. Em Sint-Niklaas, a cidade gêmea de Tabacounda, no Senegal, eles também usaram a narrativa digital para esclarecer os problemas locais. Os cidadãos de Tabacounda contam sua luta contra as mudanças climáticas:

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Em Merelbeke, que tem uma parceria com Toucountouna, no Benin, eles também descobrem como a instalação de painéis solares em edifícios garante os cursos nesta localidade:

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Também a história de Sahi Boukari, chefe do Departamento de Agricultura e Meio Ambiente de Toucountouna, é contada. Nela você toma conhecimento de como o município de Merelbeke ajudou a sensibilizar os feirantes em relação a medidas sanitárias e de higiene.

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Tradução: Michael MC Laughlin

https://www.mo.be/pt/analyse/queremos-preparar-digitalmente-jovens-para-que-tamb-m-possam-ter-uma-voz

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