Massacre de Eldorado dos Carajás completa 27 anos e resgata a urgência da luta pela terra

CESEDezessete de abril de 1996 – um dia para não se esquecer, um crime que jamais deve voltar a acontecer. Na tarde daquela quarta-feira, cerca de 1500 famílias acampavam na estrada na altura da chamada curva do S, no município de Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará, em mais um capítulo da luta pela terra no Brasil. Desde o dia 10 daquele mês, os camponeses seguiam em marcha pelo estado com objetivo de chegar até Belém e conseguir a desapropriação da fazenda Macaxeira, ocupada por cerca de 3500 famílias sem-terra.

No entanto, a luta dos trabalhadores e trabalhadoras foi interrompida de forma brutal. O acampamento foi surpreendido pela ação de 155 policiais militares de Parauapebas e Marabá, que cercaram a área e chegaram lançando bombas de gás lacrimogêneo. Ao fim do ataque, 69 pessoas ficaram feridas e 21 foram assassinadas, 19 delas no local.

A chacina, denominada de Massacre de Eldorado dos Carajás, é considerada um dos crimes mais bárbaros contra camponeses no mundo. Batista Nascimento Silva, que tinha apenas 15 anos na época, foi testemunha do massacre. “Cheguei a ver companheiros socorrendo outros baleados. Tinha uma área fechada da casa e eu empurrei a porta porque eu queria me refugiar lá dentro e lá tinham várias pessoas deitadas no chão, crianças, mulheres, senhores e jovens”, relembra em entrevista ao jornal Brasil de Fato.

Hoje Batista é professor, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e mora no assentamento Lourival Santana. Ele acredita que a ação foi uma represália contra a luta dos sem-terra. “O sistema naquele momento aqui na região era dominado pelos ideais dos reis do latifúndio juntamente com um grupo da sociedade que englobava comerciantes, empresas, por exemplo, a Vale, que estavam furiosos com a expansão e a territorialização do MST”, salienta.

A impunidade, no entanto, foi mais uma das marcas do massacre. Apesar da participação de centenas de policiais e da anuência do governador da época, Almir Gabriel (PSDB) e do Secretário de Segurança do Pará, Paulo Sette Câmara, que autorizou o uso da força policial, apenas duas pessoas foram condenadas: o coronel Mário Colares Pantoja, que recebeu a pena de 228 anos de prisão, e o major José Maria Pereira Oliveira, condenado a 154 anos. Até 2012, porém, ambos recorreram em liberdade.

Impacto dentro e fora do Brasil

O Massacre de Eldorado dos Carajás gerou um processo internacional de denúncia e solidariedade. Para marcar essa data, a Via Campesina, articulação que reúne movimentos camponeses de cinco continentes, denominou o dia 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa. No Brasil, a data também é lembrada como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, a partir de um decreto assinado por Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República. Essa data marca a luta de diversos movimentos populares do campo e da cidade dentro e fora do Brasil, dentre eles o MST, em defesa da democratização da terra e reforma agrária no país.

A CESE cumpriu um importante papel nesse processo de mobilização. Antônio Dimas Galvão, coordenador de Projetos e Formação da CESE, conta a intervenção da entidade logo após o crime: “Assim que ocorreu o massacre, a CESE rapidamente se mobilizou para realizar uma missão ecumênica na região para prestar solidariedade às famílias, mas sobretudo para denunciar em âmbito internacional e no Conselho Mundial de Igrejas a violência desse massacre. Ao mesmo tempo, apontamos a luta pela terra no Brasil como uma das principais linhas de atuação da CESE naquele período”, explica.

“A partir disso, fortalecemos o apoio de pequenos projetos em ações nas áreas de ocupação e de assentamento, mobilizações políticas, seminários, congressos e atividades nacionais para levar para a opinião pública a urgência de uma reforma agrária no Brasil como condição para diminuir a violência no campo e ao mesmo tempo fortalecer a democracia e aumentar a produção de alimentos”, salienta Dimas.

Sem-terra seguem em luta

Como parte das ações de memória e luta em decorrência do Massacre, todos os anos o MST realiza em abril a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, um ciclo de atividades públicas relacionados à pauta da questão agrária. Na última terça-feira (11), o movimento anunciou em coletiva de imprensa a 26ª edição da jornada, que concentrará atividades entre os dias 17 e 20 deste mês e traz como lema “Contra a fome e a escravidão: por terra, democracia e meio ambiente”.

A jornada do MST expressa a atualidade da luta pela terra no Brasil. E os dados comprovam a complexidade dos desafios. Segundo o Censo Agropecuário de 2021, 77% dos estabelecimentos da agricultura no Brasil são formados por pequenas propriedades e 23% de grandes e médias. Só que a pequena propriedade ocupa apenas 23% do território, enquanto os grandes proprietários ocupam 77% da área de terra no país. Ao resgatar esses dados, Dimas pontua. “Se houve uma concentração da terra, houve também uma concentração do poder político desse pessoal, porque eles fundaram as bancadas ruralista, da bala e a evangélica no Congresso. São 3 bancadas que que se aliam nas pautas conservadoras e corroboram para manutenção do poder do agronegócio e da grande propriedade da terra no Brasil”.

Para a CESE, no entanto, hoje a luta pela terra ganhou outros contornos e vai além da luta pela reforma agrária, embora esta seja uma bandeira de luta necessária. A defesa da terra inclui também a garantia dos territórios para povos e comunidades tradicionais; garantia das áreas onde populações tradicionais fazem coleta de produtos, como no caso das quebradeiras de coco babaçu; engloba a garantia de áreas extrativistas em florestas ou regiões semiáridas e a garantia de condições de produção e sobrevivência no semiárido, só para citar alguns exemplos. “Então digamos que a luta pela terra e pelo direito à terra tem vários matizes hoje que não se concentram somente na reforma agrária no modelo tradicional, embora essa seja uma pauta absolutamente relevante, atual, mas que não é a única”, explica Dimas.

Assim como o MST, Dimas destaca que a luta pela terra é, em essência, uma luta em defesa dos direitos humanos. “Além de elevar a destruição do meio ambiente e dos modos de vida de comunidades tradicionais, a concentração da terra é violadora de muitos direitos, não só trabalhistas, mas de acesso à terra, de produção de comida para alimentar o povo brasileiro e não para servir de produto para exportação. Então essa concentração da terra leva a inúmeros efeitos negativos para a democracia e para a consolidação dos direitos humanos. Sem diminuição da concentração da terra no país, acho difícil que nós tenhamos uma democracia verdadeira”, finaliza.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *